Condenação sem justa causa
A rapidez, de um lado desejável no âmbito da justiça e da eficácia processual, de outro parece ter limitado a capacidade de argumentação do colegiado, que só fez lançar cortinas de fumaça.
Por Ariel Cahen
Os desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª região mantiveram ontem, por 3 votos a 0, a condenação do ex-presidente Lula no caso do Tríplex do Guarujá, ampliando a sentença original de Sérgio Moro para 12 anos e um mês de reclusão e criando dificuldades para o registro de candidatura do petista, que é líder absoluto nas pesquisas de intenção de voto para o pleito de 2018.
Em quase oito horas de julgamento o colegiado refutou todas as alegações preliminares da defesa e fez o possível para legitimar e dar ar de consistência à denúncia oferecida pelo Ministério Público e à condenação do juízo de primeira instância – publicamente questionada por juristas de todo o país.
Ao contestar indícios de suspeição levantados pelos advogados do ex-presidente, os desembargadores asseguraram isenção aos procuradores que, além de afeitos à produção de slides, anteciparam a condenação do réu, fizeram amplo uso dos meios de comunicação para promover julgamento prévio e tiraram proveito da repercussão midiática para oferecer palestras e obter vantagens financeiras de sua atuação à frente do caso.
A mesma garantia de isenção foi estendida ao juiz Sérgio Moro.
O relator João Pedro Gebran Neto foi taxativo ao dizer que “juiz não é parte do processo, nem toma posição de antagonista em relação a qualquer réu” – se esquecendo, providencialmente, de que Moro figurou sem qualquer contestação em capas de revistas na condição de adversário do acusado, em ilustrações que o trajavam nas mesmas cores de partido político opositor em uma clara referência ao papel que lhe estava sendo atribuído.
A falta de contestação por parte do juiz de Curitiba a publicações suspeitas, aliás, é recorrente. Ele, todos se lembram, desfilou em tapete vermelho durante a pré-estreia do filme “A Lei é para todos”, financiado por entes ocultos, filmado com apoio de estrutura pública e com roteiro redigido a partir de gravações ilegais feitas na casa do ex-presidente Lula na ocasião de seu sequestro ilegal para depoimento na Polícia Federal em São Paulo.
Em países de primeiro mundo – aqueles que tanto reverenciamos – esse prestigio a um produto comercial de origem tão controversa seria impensável. Ele sequer seria reconhecido pela Força Tarefa.
A condução coercitiva de Lula há pouco mais de um ano, condenada por ministros do Supremo Tribunal Federal, também foi respaldada pelos desembargadores que, lamentavelmente, se permitiram amparar ao conceito tão absurdo quanto inexistente de ‘depoimento coercitivo’ para atenuar a gravidade dos abusos cometidos pela 13ª Vara de Curitiba.
A legitimidade da condução coercitiva, está na Lei, demanda pressupostos não reconhecidos na abordagem feita ao ex-presidente. E uma justiça incapaz de reconhecer seus erros jamais pode ser compreendida como tal.
Considerar a hipótese de um ‘depoimento coercitivo’, aliás, é também um grave ataque ao Estado de Direito e à própria democracia, uma vez que remontaria a métodos de interrogatório ditatoriais e tiranos – a exemplo do recente acorrentamento de mãos e pés do ex-governador Sérgio Cabral durante sua transferência para Curitiba.
A suspeição atribuída a Moro pela defesa de Lula, seria razoável, poderia ser estendida ao próprio Tribunal Regional Federal da 4ª região pela celeridade recorde com que o processo tramitou. Um feito notável que só Lula seria capaz de promover.
A rapidez, de um lado desejável no âmbito da justiça e da eficácia processual, de outro parece ter limitado a capacidade de argumentação do colegiado, que só fez lançar cortinas de fumaça.
Muito se falou ao longo de todo o julgamento em “provas acima de dúvida razoável” como limite para verificar a existência e a coerência das provas apresentadas pelo Ministério Público, ignorando-se em absoluto a completa e flagrante subjetividade desta hipótese. Um entre outros perigosos subterfúgios adotados para justificar a condenação diante da ausência de evidências claras e objetivas da prática de crime.
As constantes e genéricas menções ao notório esquema de corrupção observado na Petrobrás – em grande parte estranhas ao objeto em análise – também estavam entre os artifícios mais recorrentes para a construção da “culpabilidade” do ex-presidente petista. Até mesmo a influência de Lula, completamente justificável pela força do cargo que ocupava, foi citada para corroborar a tese do Ministério Público numa evidente tentativa de ‘justiçamento’ a despeito da legalidade.
Na falta de comprovação contundente, muita criatividade. A denúncia, diziam, “é complexa”. Uma tentativa quase comovente de justificar um veredito viciado e previsível diante da ausência de matéria substancial que pudesse ser considerada. “Mas complexos são os fatos”, complementavam em tom de brilhantismo.
Assim como no processo de culminou no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, a própria legitimidade do processo eleitoral foi posta em xeque sob alegação de financiamento de campanhas com recursos de origem ilegal – suspeita que recai não apenas sobre o Partido dos Trabalhadores, mas sobre todas as agremiações com candidatos à presidência naquela ocasião.
A inexistência de limites entre o efetivo cumprimento da Lei e o exercício político do judiciário, amplamente denunciada no comportamento de Moro, se mostrou uma vez mais evidente na utilização de frases de efeito, concebidas para machetes, que em nada contribuíam para a análise da sentença. “Não se vende esperanças pontuais para se obter votos”. Delírio pra torcida que se fazia presente na Avenida Paulista, tirando fotos com pixulecos gigantes e sem nota fiscal. Me compadeço ao imaginá-los assistindo à propaganda eleitoral obrigatória na televisão.
Mais cedo, ao esclarecer que não há homologação judicial da “cooperação” de Léo Pinheiro e Agenor Franklin, que tiveram suas penas atenuadas pelos mais novos heróis da nação, o relator se permitiu uma vez mais omitir informações relevantes à contextualização do caso – entre elas, por exemplo, a de que o empresário buscava, a partir de seu depoimento, um acordo de delação premiada e que em depoimento anterior, descartado pelo motivo que segue, Lula sequer havia sido citado.
A interceptação telefônica de advogados e escritórios de advocacia da defesa, também absolutamente repreensível, foi minimizada por Gebran Neto, que enxergou no incidente equívoco justificável. Se nos apropriarmos, aliás, de suas justificativas, podemos afirmar que esse caso isolado não basta para incriminar a prática dos investigadores. Mas, somado a outros tantos excessos, talvez revele efetivamente a “verdade dos fatos”.
Ainda no tema, o desembargador complementou sua tese ressaltando, implacável, que eventual prática de crime pelo advogado Roberto Teixeira, que é investigado, “não está acobertada pela inviolabilidade prevista no estatuto da ordem”. Ora. A mera suspeição do jurista tampouco pode ser usada para legitimar práticas ilegais por parte da investigação criminal.
A prolixa agenda de ontem, ao final, não respondeu às perguntas ou preencheu as lacunas deixadas pela sentença de Moro. Na contramão disso, suscitou novos questionamentos. Deixou dúvidas. Escancarou a já denunciada fragilidade do processo. E pra quem gosta de convicção, alastrou o cheiro de medo por trás das motivações que levaram à condenação do mais forte postulante ao cargo de Presidente da República nas eleições que se aproximam. Não há nada mais atraente que isso para o predador. Lula vem aí.