Eu, mulher negra, cresci com menos perspectivas do que a média da população branca do Brasil. Parte da minha vida, me preparei para ser empregada doméstica, já que todas as mulheres da minha família eram. Depois passei a desejar uma série de trampos. Mas sabia que provavelmente não passaria da entrevista de emprego. Infelizmente, o anulamento dos nossos sonhos é parte do racismo que sofremos desde o zero minuto de vida.

Um desses sonhos anulados foi o de ter uma vida afetiva. Sonho imposto e tomado ao mesmo tempo, e essa sequência de vivências me fez entender que eu iria morrer sozinha.

Esse conhecimento veio aos poucos, morava nas entrelinhas das conversas das mulheres da minha família. Como a vez perturbadora que minha mãe contou que achava que a minha avó estava brincando de pega-pega com meu avô quando na verdade ela estava fugindo de mais uma surra. Demorou, mas compreendi que minha vó estava tão só em seu casamento, que minhas tias foram abandonadas com filhos pra criar. Os exemplos da companhia destrutiva que é, na verdade, solidão, ou da solidão de fato, são muitos.

Na parte heteronormativa da minha experiência da afetividade sendo preta, percebi que a cuca te pega de dois jeitos: Ou você é hipersexualizada. Ou você tem o apelo sexual de uma porta.

No primeiro caso, a coisa é sutil no começo. Vem quando você é um bebê de seis meses de pernas gordinhas e ouve um “vai ser globeleza ela hein!”. Daí pra frente são enxurradas de “que mulherão” aos doze anos. Ou de conselhos nojentos sobre como não ser estuprada aos quatorze. Na vida adulta, você vira a mulata tipo exportação, e aí acabou.

Você tem um corpão, não tem dificuldade de pegar ninguém, “testa” sua sexualidade, tem atenção garantida. Por isso acha que essa parada de solidão é balela. Mas, em algum momento, você percebe que simplesmente nunca é a namorada. É a mina do canto da festa, é a ligação no meio da madrugada, é o crush que “tem aquela coisa de pele”, a “química”. É divertido no começo, é eletrizante, mas… É só isso.

No máximo, você pode ser a exótica. Especialmente agora, em tempos de desconstruidões. Vai andar de mão dada, um beijo ou dois em público, tudo para mostrar que o cara tem ao lado a “mina black da hora”. Mas nas internas, segue perpetuada a dinâmica de que ela, a mulher negra, vale menos. Você está lá para dizer algo sobre o cara, não sobre você mesma.

Depois de um tempo essa mina entende que os caras ou querem sexo ou biscoito.

No segundo caso, você cresce com a premissa que ser negra é ser sobre-humana. Você é forte, guerreira, batalhadora. O foco é conseguir o próximo salário ou alimentar as crianças. Por isso, não pode se dar o luxo de se ligar nas coisas mundanas, como sexo ou relacionamentos. Às mulheres brancas cabem o amor romântico. À você, ser uma fortaleza.

Esse papel foi historicamente atribuído às “mães solteiras”, viúvas, tias, cozinheiras. Hoje é o da menina inteligente, dedicada à família, a que vai fazer diferença na comunidade. E então ela cresce sem perceber como está, frequentemente, apegada a um homem medíocre que por vezes que a violenta. Ela alimenta a esperança de que estão em um relacionamento que evolui a cada pedido de desculpa. Na verdade, ela se tornou expert criar inventar uma pra cada vacilo dele.

Há uma subcategoria hedionda nesta tipologia: a gorda.

O seu corpo simplesmente não é visto como “transável”. Pelo menos não quando se está sóbrio, em público, com a luz ligada. São para essas mulheres, como eu, que sobram frases como “você tem que agradecer que eu te estuprei, todo mundo tem nojo de você”.

Depois de um tempo essa mina entende que quando um cara cola, ele só pode ter perdido uma aposta. Ou estar de olho na sua casa.

Além disso, não podemos falar sobre isso com quase ninguém. A solidão da mulher negra não existe enquanto tema em grande parte dos debates. Inclusive nos espaços feministas. Todas as mulheres são abusadas em suas relações igualmente, dizem. Não somos, não.

Classe, raça e gênero. Dessa trinca a mulher negra entende bem. E o recado é claro: você está sozinha.

Não conseguimos debater como os brancos e as branca o amor livre, por exemplo. Pois muitas das nossas nunca tiveram um relacionamento na vida, vivem um celibato forçado. Também queremos quebrar paradigmas do relacionamento pautado na ideia do amor romântico, se livrar da dominação masculina nas nossas uniões. Mas antes queremos ter o direito a um relacionamento.

À sociedade que nos coloca nesse lugar, pergunto:

Com quantas mulheres negras você transou? Quantas mulheres negras você namorou? Quantas mulheres negras você vê casada e com filhos? E quantas brancas? Quantas vezes você foi a pessoa que fica com uma mina negra, na vibe de ser livre, sem querer nada sério, mas depois encontra uma branca e a magia do amor acontece?

Mas, esse texto não é sobre a culpa caucasiana, esse texto é sobre nós, mulheres negras. Sobre como escapar dessa armadilha.

Eu faço parte de uma rede e moro numa casa com outras 30 pessoas. Lá posso debater e descobrir os relacionamentos sendo uma mina gorda, de pele escura e de nariz grosso. Nessa rede, me livro um pouco a cada dia da expectativa de um futuro inevitavelmente solteiro. Mas outras minas como eu, as negras de traços finos, magras e altas, feministas ou não, também podem encontrar suas maneiras de se curar. Inclusive, para estarmos hoje, de pé, já o fazemos diariamente.

Somos diferentes, mas compartilhamos uma silenciosa marcha rumo à solidão afetiva. Por isso, o apoio tem que ser igualmente compartilhado. Não há dúvidas que somos merecedoras de amor e o antídoto é amar cada vez mais nossas irmãs.

Nosso triunfo é não ceder e continuar amando – principalmente a nós mesmas.

E pra começar a onda, mozão, pergunto: e aí preta, tá livre hoje a noite? 😉

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*Texto originalmente publicado no blog #AgoraQueSãoElas