Combater o trabalho escravo… De olho aberto!
Os resultados do combate ao trabalho escravo do último ano (2023) confirmam a tendência registrada nos dois anos anteriores: a retomada de números expressivos de fiscalização e de resgate
Os resultados do combate ao trabalho escravo do último ano (2023) confirmam a tendência registrada nos dois anos anteriores: a retomada de números expressivos de fiscalização e de resgate, uma situação que, equivocadamente, alguns comentadores têm interpretado como a ressurgência de uma prática criminosa após 7 anos de “calmaria”. É sempre bom lembrar que número não é realidade: somente a ponta do iceberg que a vigilância da sociedade e as investigações do poder público conseguem trazer para a superfície visível.
A mobilização da categoria dos Auditores fiscais do trabalho, desde janeiro de 2024, manifesta o desdém com o qual esses combatentes da primeira linha têm sido tratados pelos últimos governos, chegando ao extremo de faltar mais de 40% do efetivo teoricamente aprovado para ir a campo, sem falar do abandono na área de equipamentos e meios de trabalho.
Nossa primeira saudação é para eles e para elas. Apesar das condições adversas, às vezes tirando leite de pedra, eles conseguem comprovar para a sociedade que o trabalho escravo nunca parou. Pelo contrário, continuou se propagando à sombra de políticas de abandono e precarização que, anos a fio, presidiram ao destino do país.
Números que questionam
Vejamos alguns dados, começando pelo ano de 2023 e ampliando para períodos recentes. Pela quantidade de pessoas resgatadas, os 5 estados que em 2023 mais ‘escravizaram’ — Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul e Piauí (nessa ordem) — formam um quinteto surpreendente. Isso porque nele não estão estados habituados a frequentar essa classificação inglória, como costumam ser Pará, Maranhão, Mato Grosso ou Bahia, estados nos quais, durante décadas, o trabalho escravo tem sido prática recorrente.
Outra curiosidade: este mesmo quinteto ‘2023’ já vem liderando praticamente desde 2015, mediante ínfimas diferenças na ordem dos fatores (Minas ficando à frente de Goiás — e de longe — na 1ª posição, ou Pará mantendo-se esporadicamente na 5ª posição).
No quinteto ‘2023’, como no de 2021-2024, estão representadas todas as grandes regiões do Brasil: Sudeste, Centro Oeste, Sul, Nordeste… Todas? Falta aquela que, na ótica da história do trabalho escravo contemporâneo, “deveria” ser a principal: a região por onde iniciou grande parte da luta moderna contra essa prática: a região Norte (e a Amazônia como um todo).
O Pará, que ocupou sempre a 1ª posição até 2014, passou para a 5ª posição no ranking 2015-2024 (e para a 7ª posição no ranking 2021-2024).
Entre 1995 e 2004, o bioma amazônico representou 64% dos resgatados (9.105 pessoas); essa proporção caiu para 31% no período 2005-2014 (11.500) e apenas 10% no período 2015-2024 (1.620).
Cerrado, espaço de expansão do agronegócio… e do trabalho escravo
Em contrapartida, é notável a posição dominante ‘conquistada’ pelos estados inseridos na região do ‘Cerrado’, território principal da expansão recente do agribusiness brasileiro. Os trabalhadores escravizados encontrados no Cerrado estavam em 49% do total em 1995-2004 (7.059), subiram para 56% em 2005-2014 (20.883) e 63% em 2015-2024 (10.041).
Para o período de 2021 a 2024, dos 9 estados com maior número de resgatados (5.914, ou 71% do total nacional), 7 estados têm seu território — em totalidade ou em sua maior parte — dentro do Cerrado. São eles, por ordem: Minas, Goiás, São Paulo, Piauí, Maranhão, Mato Grosso do Sul e Bahia. Idem para o período 2015-2024: esses mesmos 7 estados permanecem no grupo dos 9 ‘campeões’ de resgates.
De 2015 para cá, neles foram resgatadas, uma média de 1.000 pessoas por ano (7 em cada 10 do total nacional). Sua força de trabalho era explorada, principalmente, em lavouras (350 resgatados por ano, sendo 140 na cultura do café, 90 entre soja e milho, 75 no alho), em canaviais (128), no extrativismo vegetal (43), na pecuária (34) ou na monocultura de árvores (16).
Situações contrastadas
Nos últimos 4 anos, mais da metade dos resgates se concentrou em apenas 2 estados: Minas e Goiás, ficando os outros 3 estados do quinteto com 20% dos resgatados. Em todos eles, o trabalho escravo é concentrado em atividades realizadas no campo e ligadas ao agronegócio — com destaques para o café e para o “retorno” do setor canavieiro:
– A disseminação da prática é grande em Minas Gerais: é alto o número anual de casos identificados no estado mineiro (70 ou mais), comparado ao de Goiás (15 a 20). Quanto às atividades econômicas envolvidas, 80% dos 739 resgatados de Goiás em 2023 foram retirados de 4 canaviais e 2 lavouras; em Minas Gerais, a maioria dos resgates foi concentrada em 2 setores: café (27 ocorrências) e carvoarias (12). Mesma situação em 2022, com a diferença de que, naquele ano, Minas Gerais resgatou 367 pessoas em 5 canaviais. Outro indício da disseminação do trabalho escravo em Minas: a prática foi flagrada em nada menos que 58 municípios em 2023 e 57 em 2022 (em Goiás: 18 municípios em 2023, 14 em 2022).
- Em São Paulo: 27 dos 40 flagrantes de 2023 ocorreram fora do campo, mas metade dos resgatados foram encontrados no campo (196 deles em 6 canaviais).
- No Rio Grande do Sul: 9 em cada 10 resgatados de 2023 foram retirados de apenas 3 estabelecimentos, e virou manchete nacional o caso das vinícolas de Bento Gonçalves (Garibaldi, Saltão & Aurora), com seus 210 resgatados, quase todos negros, trazidos da Bahia por um gato “pejotizado” por nome “Fênix”. Em 2022, o trabalho rural havia também representado 10 dos 12 casos ali encontrados, com destaque na maçã onde é costumeira a contratação de trabalhadores indígenas trazidos de Mato Grosso do Sul.
- No Cerrado piauiense, o panorama é distinto: fora algumas lavouras de soja, o trabalho escravo é flagrado na extração de palha de carnaúba e em pedreiras, na atividade de britamento.
- No resto do país, em 10 estados a média ficou, em 2023, na faixa de 80 pessoas resgatadas: MA (107), PR (101), BA (94), MS (88), ES (77), AL (74), PA (74): esses mesmos estados têm ocupado posição semelhante (exceção: AL) ao longo dos últimos 3 anos (2021-2023). Por fim, outros 11 estados, cada um com uma média de 30 resgatados (PB, SC, CE, TO, RR, RJ, PE, RO, MT, AM, DF). Apenas 4 estados não tiveram resgate (AC, AP, RN, SE).
2023: número recorde
O total de fiscalizações e de resgates realizados em 2023 superou qualquer número observado desde 2010. O ano de 2023, por si só, representa o dobro da média registrada entre 2010 e 2022.
Mesmo assim fica essa dúvida: quantas pessoas nesta condição não foram resgatadas? Quantas situações semelhantes deixaram de ser denunciadas ou investigadas?
E mais essa pergunta: por que mistério — em contraste com os Cerrados – a região Norte e a Amazônia, também comprovadas áreas de expansão do agronegócio ao longo do famoso arco do desmatamento e espaço aberto para tantas atividades ilícitas, teriam escapado desta “nova onda” de trabalho escravo no país?
A média anual de resgates na Amazônia — 2.000 pessoas por ano no período 2003-2012 — caiu abaixo de 500 resgates anuais a partir de 2013, ficando na média de 300 por ano entre 2013 e 2018, e 235 de lá para cá (em 2023: 285). Paralelamente, verificamos que a média de fiscalizações de trabalho escravo na Amazônia, que era de 150 por ano entre 2003 e 2015, de lá para cá caiu abaixo de 100, com exceção dos anos de 2017 (114) e 2021 (140).
As dificuldades de acesso, mas, sobretudo, a desarticulação e os retrocessos nas políticas de controle ambiental, reforma agrária e fiscalização dos territórios, devem ser relacionados a esse recuo. Difícil é acreditar que a situação hoje visível na Amazônia seja reflexo da realidade: ela mais traduz um déficit crucial de fiscalização e uma falta de coordenação das ações do Estado — especialmente na área ambiental — que remetem a problemas criados por anos sucessivos de sub investimento em contratação e infraestrutura.
Neste contexto, o anúncio, feito em junho de 2023, de um concurso visando repor 900 vagas na carreira da Auditoria Fiscal do Trabalho — ainda por ser efetivado — soou como um alívio. No entanto, isso não garante que serão providos os cargos tão necessários nas regiões hoje entre as mais deficitárias, se for considerada não apenas a população ativa existente, mas também a extensão do território a ser fiscalizado e suas dificuldades próprias.
Hoje, na Amazônia, estão lotados em torno de 200 Auditores Fiscais do Trabalho, menos que em São Paulo (292), Minas Gerais (223) ou Rio de Janeiro (216); o Norte tem 137 Auditores: menos que o Rio Grande do Sul (145).
Trabalho escravo doméstico
Um destaque importante nos últimos anos é a frequência de flagrantes no trabalho escravo doméstico (101 casos desde 2021). Uma atividade emblemática, essencialmente feminina, não exclusiva do ambiente urbano: entre as 41 pessoas resgatadas de serviços domésticos em 2023, 11 laboravam em residências rurais.
De novo, verificamos que os 5 estados liderando neste ramo tão emblemático da cultura escravocrata são quase os mesmos já citados acima, só trocando Piauí por Bahia: SP (11), RS (7), BA (6), MG (5), GO (2), sendo equiparado com RJ e PE.
Emblemático, o trabalho escravo doméstico pode ser assim considerado não só pela tradicionalidade desta prática em um país que tem 5,8 milhões de pessoas empregadas em serviços domésticos (92% são mulheres e 65% delas, negras), mas também pela força e recorrência das narrativas de naturalização apresentadas pelos próprios empregadores, encampadas por setores da mídia ou mesmo ratificadas por membros eminentes da magistratura, como ocorreu no caso recente — escandaloso — da empregada Sônia, mulher negra, com deficiência auditiva profunda, mantida analfabeta, sucessivamente resgatada e “retornada” ao lar dos seus patrões catarinenses, auto referidos como “pais afetivos” de uma senhora relegada por 40 anos no quartinho da casa grande.
Neste caso específico se expressa com toda a sua crueldade, a contraditória condução da política brasileira de combate ao trabalho escravo. Inédita é a paralisia concertada das mais altas instâncias do Judiciário, exclusivamente empenhadas em acobertar, há quase um ano, a mais descarada prática escravagista de um dos seus membros de alta patente (desembargador de Justiça). Inacreditável é a inversão total de responsabilização que levou um Ministro do STJ a decretar investigação administrativa e penal contra o Auditor Fiscal do Trabalho que coordenou, com todas as regras da arte, a operação de resgate de Sônia em junho do ano passado. Insuportável é a re-vitimização da trabalhadora resgatada e, em seguida e até hoje, des-resgatada, devolvida aos seus patrões e privada do convívio da própria família biológica.
Em sua absurda extremidade, o caso de Sônia deixou de ser singular, tão revelador o caso se tornou da entranhada impregnação da cultura do quartinho e da naturalização da prática do trabalho escravo no discurso de quem dela se beneficia há séculos.
Quantas outras ‘Sônias’ precisarão aguardar uma vida para saírem (se saírem…) desta condição? Quem falhou?
Em tempo: nas características recorrentes das pessoas tratadas em condição análoga à de escravo está a cor: no registro oficial do Seguro-Desemprego onde, a partir de 2003, todo resgatado tem o nome inserido, apuramos que, entre as 8.309 pessoas incluídas entre 2016 e 2022, 6.813 se autodeclararam como pardas (65,2%) ou como pretas (16,8%): 4 em cada 5. Sônia é mais uma delas. #sonialivre!
Chega de Escravidão!
Para a CPT, o combate ao trabalho escravo nos remete à raiz do compromisso com o caráter sagrado da vida e sua absoluta dignidade. Nela, se conectam e se reforçam as lutas travadas pelos povos do campo contra todas as cercas que oprimem, degradam e matam a vida.
Por isso, vem! Entra na roda com a gente! Hoje lançamos essa campanha de sustentabilidade: um convite dirigido a você para lutarmos juntos pela erradicação do trabalho escravo e com as demais lutas conectadas com essa causa. Juntos, façamos nosso esse clamor: “Chega de Escravidão!”
Saiba mais e contribua com a continuidade da ação da CPT pelo site chegadeescravidao.org.br Aguardamos você.