Combate à violência feminina, inclusão social, direitos humanos e tecnologia na causa feminista à luz do Direito
Confira entrevista com Paula Tavares, especialista-sênior em direito e gênero do Banco Mundial
Uma ótima conversa rende identificação, aprendizado, novas ideias e, consequentemente, muito conteúdo como fonte de pesquisa e estudo. Minha entrevistada, Paula Tavares, é uma referência brasileira e internacional no impacto da legislação e das políticas públicas para as mulheres na promoção de melhores oportunidades, maior equidade e proteção contra a discriminação, a violência, e garantia dos direitos humanos. Advogada especialista sênior em gênero e direito da mulher, a especialista reúne mais de 15 anos de experiência em desenvolvimento internacional e direito comparado com foco em equidade de gênero, inclusão econômica das mulheres e desenvolvimento do setor privado. Há mais de 11 anos desenvolve iniciativas e projetos no Banco Mundial, sobretudo em países da América Latina, África e Brasil, ligados a estas e outras questões.
Paula Tavares é Mestre (LL.M.) em Direito Internacional pela Universidade de Georgetown nos Estados Unidos, com especialização em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. É Professora Adjunta na área de Gênero e Direito Internacional na American University Washington College of Law e atua como Professora Convidada no Instituto Global de Direitos Humanos da University of Pennsylvania Carey Law School. É Global Fellow no Brazil Institute do Woodrow Wilson Center e membro do conselho consultivo da Gender Equality Initiative (GEIA) da George Washington University (EUA). Inscrita na OAB (DF), é também membro da International Bar Association (IBA) e da organização Women Inside Trade (WIT). É palestrante e autora de artigos em suas áreas de atuação.
Nesta entrevista abordamos temas complexos traduzidos com simplicidade e clareza por Paula Tavares, como formulação de legislação e políticas específicas e sensíveis em questões de gênero, tecnologia como catalisadora da inclusão feminina no mercado de trabalho, aliada na causa feminista, importância dos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU para reduzir as desigualdades sociais, ferramentas digitais acessíveis a mulheres para se protegerem e lutarem por seus direitos, como cases de assistentes virtuais, desenvolvidos pela iniciativa privada e governamental. Ainda ganhamos todos uma aula sobre Direito da Mulher: o que é, conquistas e breve contextualização histórica no Brasil e exterior.
Como a conversa rendeu, foi dividida em três partes, um precedente que nossos leitores e leitoras merecem.
A senhora é advogada e especialista sênior em políticas para as mulheres, com mais de 15 anos de experiência em desenvolvimento internacional e direito comparado com foco em igualdade de gênero, inclusão econômica das mulheres e desenvolvimento do setor privado. Poderia contextualizar as motivações que a levaram a estas temáticas como objetivos profissionais e pessoais?
Foram vários os fatos que me levaram a especializar na temática de gênero, desenvolvimento internacional, com foco em direito, ampliação dos direitos e políticas para mulheres. Desde muito nova fui exposta a culturas diferentes, internacionais. Tive um histórico familiar de mulheres, inclusive na geração das minhas avós, que trabalharam, tiveram profissão e trouxeram um modelo de mulheres independentes. Cresci querendo servir como propósito para impactar na diminuição da desigualdade e diferenças, principalmente em direitos e oportunidades, com um enfoque também nessas questões no âmbito mundial. Cogitei diferentes carreiras, como a diplomacia, ou em uma organização internacional, como a ONU. Guiada pela paixão pela promoção de direitos, me formei como advogada no Brasil, com especializações em relações internacionais e direitos humanos, e iniciei minha carreira trabalhando para o governo na área de formulação de políticas no âmbito internacional. Tive então a oportunidade de realizar um mestrado em Washington, que abriu portas para trabalhar em um projeto no Banco Mundial com enfoque na análise comparativa dos direitos das mulheres e o impacto na sua inclusão econômica em âmbito global. Continuei avançando este trabalho dentro do Banco Mundial, entendendo cada vez mais o impacto da legislação e das políticas públicas para as mulheres na promoção de melhores oportunidades, maior equidade e proteção contra a discriminação, a violência, e garantia dos direitos humanos. Toda essa trajetória trouxe enorme aprendizado e um entendimento claro: a formulação de legislação e políticas específicas e sensíveis em questões de gênero é crucial para que os avanços de desenvolvimento sejam com maior inclusão.
Hoje esse trabalho no Banco Mundial é considerado uma referência na análise comparativa da legislação de diferentes países com perspectiva de gênero, seu impacto na participação feminina na economia, e a importância da igualdade de gênero para o desenvolvimento econômico dos países. Além do enfoque analítico, atuo também na implementação desse trabalho em prol da promoção da igualdade de gênero nos países em que o Banco opera, por um lado garantindo que os projetos e o trabalho do banco estejam servindo para identificar e fechar lacunas de gênero, bem como prestando apoio a governos em reformas legislativas de promoção dos direitos das mulheres. Tenho trabalhado nos últimos anos em especial com a África, a América Latina e o Brasil, que têm ao mesmo tempo grandes semelhanças e enormes disparidades em certas áreas, e em questões de avanço dos direitos e desigualdades socioeconômicas entre homens e mulheres. As origens históricas estão interligadas, se assemelham e assim também se perpetuam. Uma parte do trabalho é promover o intercâmbio de experiências, boas práticas, e conhecimentos em âmbito regional e global, contribuindo assim para acelerar os avanços.
Poderia apontar quais foram os maiores avanços relacionados à inclusão feminina na sociedade e mercado de trabalho nos últimos anos? Por quê?
O que vimos com a pandemia é que os avanços que vínhamos acompanhando em termos de equidade de gênero e inclusão feminina na sociedade e no mercado de trabalho sofreram um grande retrocesso. As estimativas mostram um retrocesso de aproximadamente uma década na América Latina, e de uma geração em termos globais. No Brasil, a participação das mulheres no mercado de trabalho é a menor dos últimos trinta anos. Com a pandemia, as mulheres sofreram com maior perda de emprego, saída do mercado de trabalho e dificuldade de conseguir se recolocar, principalmente agora na retomada da atividade econômica. As barreiras à inclusão econômica da mulher, principalmente na participação no mercado de trabalho, são derivadas de desigualdades de gênero estruturais, muito associadas a um legado patriarcal que condiciona as dinâmicas dos papéis no âmbito familiar, impondo às mulheres maiores responsabilidades com os filhos e afazeres domésticos, tendo ainda que equilibrá-las com as atividades produtivas. A dupla e tripla jornadas das mulheres, agravadas com a pandemia, tendo que trabalhar e cuidar dos filhos em casa, entre outras questões, resultou num impacto muito maior na capacidade delas de se manter no mercado de trabalho no contexto da crise.
Se pensarmos nos avanços em termos de legislação, principalmente desde o início dos anos noventa, tivemos diversas leis que foram aprovadas com o intuito de diminuir as desigualdades entre homens e mulheres. Aumentou-se o período de licença maternidade, introduziu-se a licença paternidade, foram abolidas restrições ao trabalho das mulheres em alguns setores em horário noturno, houve a criminalização do assédio sexual. Tivemos também leis importantíssimas adotadas nos últimos quinze anos contra a violência: a Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio, entre outras. Importante lembrar dos avanços em termos de direitos no último século: Foi apenas em 1932 que o direito de voto feminino foi reconhecido em lei. Até meados da década de sessenta, as mulheres casadas precisavam de autorização do marido para trabalhar, abrir conta em banco, ter estabelecimento comercial ou mesmo viajar. E só em 1988, com a nova Constituição, é que foi formalmente consagrada em lei a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres. Apesar dos avanços, avaliações da desigualdade de gênero no relatório global do Fórum Econômico Mundial, por exemplo, mostram que o Brasil ainda hoje é um país com grandes disparidades entre homens e mulheres, ocupando o 22° lugar entre 25 países da América Latina e 92º entre os 153 analisados no mundo. De acordo com o último relatório, na trajetória atual, levaríamos quase sessenta anos para alcançar a paridade nos quesitos avaliados. Se pensarmos na questão da participação política das mulheres, o Brasil é um dos países com uma das mais baixas representações no mundo. E em termos de legislação de promoção dos direitos econômicos das mulheres, de acordo com o último relatório Mulheres, Empresas e o Direito do Banco Mundial, a Brasil pontuação do Brasil (no índice WBL) é 85, ligeiramente acima das médias regional (80,1) e mundial (76,1).
Com a pandemia, e retrocesso nos avanços alcançados, existe uma necessidade de atuação mais comprometida de todos os atores para revertermos o quadro e retomarmos o movimento positivo mais rapidamente.
Acredita que a tecnologia (avanços no desenvolvimento de plataformas de comunicação, internet das coisas, wearable objects, programas, novas formas de interação) foi um catalisador mais positivo do que negativo na inclusão feminina no mercado de trabalho, inclusive de TI, no Brasil e no mundo? Como a tecnologia pode ser uma aliada na causa feminista?
A tecnologia trouxe muitos elementos positivos. Pode ser considerada uma aliada em alguns sentidos na causa feminista, trazendo oportunidades de maior empoderamento feminino e de uma participação mais expressiva no mercado de trabalho, no empreendedorismo e servindo como um catalisador da maior inclusão econômica das mulheres. As plataformas digitais, a internet, o acesso a telefones celulares e serviços financeiros digitais, por exemplo, contribuíram para saltos no acesso a oportunidades e redução de diferenças, dando às mulheres a possibilidade de ter rendas adicionais, maior acesso a empregos, a conhecimento e à informação.
Em muitos países em desenvolvimento e emergentes, as mulheres sofrem com maiores restrições à mobilidade e locomoção e no acesso à informação, serviços e redes, impactando seu empreendedorismo. As tecnologias digitais contribuem para as mulheres acessarem novos mercados e poderem trabalhar de maneira mais flexível e remotamente. Os treinamentos cada vez mais oferecidos de maneira virtual e as mentorias (participo de algumas, hoje todas possibilitadas ou potencializadas pelo uso tecnologia), tudo isto tem contribuído muito para garantir o acesso das mulheres a novos espaços e, principalmente, a novas oportunidades econômicas, antes muito mais inacessíveis. As transformações digitais geradas pela tecnologia permitiram a muitas mulheres o acesso a contas bancárias pela primeira vez. O custo muitas vezes de serviços financeiros digitais é mais baixo do que o de serviços tradicionais. Por meio da tecnologia e de plataformas digitais houve o maior espaço para as mulheres ganharem autonomia, se colocarem e se inserirem na sociedade. Estudos mostram que o aumento das plataformas e da tecnologia também poderia favorecer a participação feminina no mercado de trabalho quando se pensa nas aptidões femininas e os tipos de trabalho que as mulheres têm maior propensão a realizar, muitos dos quais são menos suscetíveis a serem substituídos por máquinas, em comparação com o trabalho tradicional masculino. Há uma tendência também de crescimento em setores tradicionalmente dominados pelas mulheres e empregos que privilegiam essas aptidões (habilidades sociais e interpessoais, por exemplo), podendo torná-las uma vantagem comparativa na era digital, em especial quando associadas ao uso da tecnologia.
Por outro lado, deve-se lembrar que muitas vezes há desigualdade de gênero no acesso à internet ou a celulares. A conectividade ainda é uma questão de desvantagem para mulheres, que sofrem com menor acesso em muitas partes do mundo, principalmente em áreas rurais, e em países e locais com menores condições econômicas.
A inserção das mulheres no setor de tecnologia é outra questão a ser enfrentada, no acesso às profissões e principalmente a cargos de liderança. As mulheres estão sub-representadas em áreas de maior crescimento de empregos vinculados à tecnologia da informação, por exemplo, e sua participação se concentra em funções mais administrativas ou de serviços, que também tem maior risco de serem substituídas pela tecnologia. A participação das mulheres também como sócias de startups, principalmente na tecnologia, é muito menor do que a de homens, assim como sua representação nessas áreas, principalmente em cargos gerenciais. Dados do IBGE de 2019 no Brasil mostram que apenas dezoito por cento dos profissionais nas empresas de tecnologia são mulheres e que os cargos gerenciais ocupados por mulheres são formados por apenas onze por cento do total de líderes, conselheiros e diretores. É preciso avançar bastante mais.