Coma chocolate e assista ‘Wonka’ da mesma forma: sem culpa
Timothée radiante, direção de arte embasbacante e uma história bem contada – a explosão de sabores de “Wonka” não é o docinho da madrugada que você come escondido
Começa com um bang: eu tinha esquecido que as histórias da fábrica de chocolate também eram musicais. Entra então Timothée Chalamet, atarracado num mastro de navio, descendo como se fosse um pole dance, enquanto entoava sua primeira fala em forma de canção.
O número musical estreia os 116 minutos de deleite visual, uma experiência metade gastronômica, metade gráfica, tão fantástica como os títulos dos outros filmes inspirados no livro do inglês Roald Dahl. Dá pra ver que é o puro suco do popular gênero “filme de fim de ano”, onde, apesar de não entregar a atmosfera natalina, fala de amor, família e esperança. O primeiro filme foi lançado em setembro de 1971, e o segundo em julho de 2005, e este, inicialmente previsto para março, caiu como uma luva em dezembro.
A meta desta vez é apresentar como “Willy se tornou Wonka”, numa esperta decisão de fazer um “prequel”. Ao assisti-lo, eu quase consigo ver as três versões do personagem que conhecemos no cinema em uma linha do tempo – Timothée interpreta um ingênuo e apaixonado chocolatier que se torna Johnny Condenado Depp, um excêntrico empresário do ramo dos doces e chega à sua forma final com a atitude “foda-se as convenções”, que só os mais velhos como Gene Wilder podem ter.
Boa parte da trama se encarrega de explicar a motivação por trás das criações dignas de fábula do fazedor de doces, elaborando mais sobre seu amor pela profissão, pelo produto, pelos ingredientes e também por sua mãe. Apesar de estranho e irreverente, Willy é como muitos de nós e faz de tudo para ter mais um abraço da sua genitora. Todo esse pano de fundo me deixa mais confortável no mundo de Wonka. Sinto que tudo ali faz sentido na cabecinha dele e não é só um cenário meio pop arte, meio vômito de unicórnio: bonito de ver, difícil de acreditar.
Quando saí da sala de cinema, ouvi algumas pessoas dizer que este é o Wonka antes de ser engolido pelo capitalismo. Aquela fase gostosa que o empreendedor só se preocupa em entregar um bom serviço e compartilhar sua paixão com o mundo. Depois vem os boletos, as olheiras, a CLT e tudo muda. Ter sucesso não é ser feliz. Ao ficar sabendo das viagens em busca de conhecimento culinário do personagem principal, eu adicionaria mais um fator à relação dele com os auto-proclamados empresários bem sucedidos: uma boa pitada de apropriação cultural e gourmetização.
Eu já vi histórias de gente que vai pesquisar o modo de fazer de outros países e volta com um produto inovador e vejo no dia a dia meu podrão virar um hambúrguer artesanal nos carrinhos food trucks. Aconteceu na indústria da moda, aconteceu na indústria alimentícia. Mas o simpático Wonka desvia de reviews acaloradas dos foodies de Instagram ao vender a preço justo, contar a história do alimento e honrar o fator memória afetiva de cada mordida.
Outra coisa que chama atenção é a presença de Noodle (Calah Lane). Quando vi a garotinha negra no trailer, apontei como golpe. Me parecia mais uma tentativa oca de representatividade, uma distração para o fato de que o protagonista era um ator branco meio americano, meio francês, com cara de criança. Mas Noodle é mais importante para o plot do que vejo que roteiristas estão acostumados a fazer, tem personalidade própria e sua história dá razão para que o filme continue depois do clímax. (Vale também assistir esse vídeo da atriz toda feliz vendo seu rosto pela cidade).
Pode ser que eu tenha comido um pedaço do chocolate “lado bom” (silver lining) e esteja vendo coisa onde não tem, mas o longa dá uma pequena faísca de esperança, fazendo a gente pensar que talvez Hollywood finalmente esteja aprendendo a inserir personagens negros em suas histórias. De Jim Crow no passado e a teimosa narrativas colorblind (daltônicas, quando ser negro não afeta em nada a personagem, como se sua presença fosse normatizada em toda sociedade), há algo reconfortante em termos uma coadjuvante negra, um vilão negro, uma mulher negra gorda que não faz o papel de mãe, policiais negros corruptos e dentro das quatro linhas, figurantes, coro, ballet, retintos e afrobeges tão complexos quanto o gênero do filme permite ser.
Seguindo com meus apontamentos militudos, o filme podia ter passado “muito bem, obrigada” sem todas as piadas de gordo, eu literalmente revirava os olhos a cada vez que isso acontecia. Se você tirar esses momentos do roteiro, nada teria sido danificado na história. Se a questão é saúde (alô sessão de comentários da Thais Carla), o personagem do hilário Keegan-Michael Key poderia ter diabetes. Ou mesmo só apresentar os problemas que um viciado tem, como vender pertences, perder família, emprego, etc.
Mas, sendo bem honesta, eu não fui ao cinema para submeter o filme à uma versão mais atual e interseccional do Teste de Bechdel. Eu fui lá para ver se Timóteo dava conta. Chalamet tem uma carreira que pode ser considerada brilhante para a pouca idade. Aos 22 anos, ele foi a terceira pessoa mais jovem da história a ser indicada ao Oscar na categoria de Melhor Ator. Caiu no gosto da crítica, diretores e escritoras de fanfic por “Call Me By Your Name”, atuou ao lado de estrelas gigantes nos filmes seguidos, está a frente de uma grande possível franquia de sci-fi e tem um dos postos mais cobiçados por homens em Hollywood: é amigo da Zendaya.
Tudo isso em papéis pendendo para o drama. É um caminho mais óbvio se você quer cair no gosto do film Twitter, ou se você quer mesmo a estatueta. Mas Willy Wonka não seria isso. Willy é bobo, inocente, tropeça nas palavras, usa figuras de linguagens absurdas, dança, canta e sapateia, flutua no ar, come coisas duvidosas – ele é um prato cheio pra comédia. E nem todo bom ator é um bom ator de comédia. E Timmy deu conta. Tirando momentos onde era ofuscado pela gigante Olivia Colman, que já pôs no bolso esse e todos os outros gêneros da dramaturgia, ele brilha. É a sua versão do dono da fábrica de chocolates que está na tela e eu não lembro de mais ninguém.
Com todos esses elementos eu começo a entender que a adaptação de Tim Burton não é um remake do filme dirigido por Mel Stuart. Ele dança sua própria coreografia, apresenta suas próprias personagens e entoa sua própria lição. Se ainda não resistirmos à tentação de comparar Wilder, Deep e Chalamet, é necessário dar ao último o que é de César, afinal de contas, ele fez algo que nenhum dos outros fez até então: Timothée entra pra um panteão de divas pop que nos ensinaram palavras difíceis.
Dilma nos ensinou a escrever Impeachment (lê-se golpe), Beyoncé ensinou a soletrar Renaissance. Timothée nos ensinou a escrever o nome dele. Chalamet, bem vindo ao mainstream.