Com a invasão do Capitólio, o imperialismo chega em casa
As cenas da invasão ao Capitólio ilustram bem o que acontece quando imperialismo chega em casa. Em sua nova coluna, Camarada Gringo analisa como isso pode reverberar no mundo, destacando o papel do excepcionalismo estadunidense.
A invasão ao Capitólio pelos trumpistas é o que acontece quando o imperialismo chega em casa.
No dia 6 de janeiro de 2021, duas semanas antes da posse presidencial de Joe Biden, estava marcada a última fase de oficialização do vencedor da eleição – cabia ao congresso contar os votos do colégio eleitoral. Trump convocou seus apoiadores a estarem presentes em Washington D.C. neste dia. Milhares deles atenderam a convocação. Reunidos na capital, ouviram os discursos do presidente e do seu advogado, Rudy Giuliani. Giuliani declarou que era hora de um julgamento através do combate e Trump disse que os seus apoiadores deveriam ser firmes e mostrar a convicção deles para o vice-presidente, Mike Pence. A mensagem principal era de que houve fraude na eleição presidencial de 2020 e que, na verdade, Trump era o vencedor.
As palavras de Trump e Giuliane legitimaram sentimentos que estavam sendo gestados há semanas e então os apoiadores de Trump invadiram o Capitólio. As imagens impactantes repercutiram no mundo todo.
Entretanto, para quem acompanhou a concatenação dos eventos, a invasão não foi uma grande surpresa. Na noite anterior, vários grupos extremistas e milícias trumpistas protestaram nas ruas de Washington D.C.. Houve um conflito pequeno, mas não sem ironia: apoiadores de Trump brigaram com a polícia. O líder dos Proud Boys, Enrique Tarrio, foi preso e impedido de participar dos eventos no dia seguinte. Muitas das pessoas que compareceram à capital no dia 6 de janeiro não eram membros de grupos organizados e muitos eram de fora da cidade. Por exemplo, o sujeito que apareceu com chifres, rosto pintado e sem camisa é um ator, apoiador de Q-anon que veio do Arizona, um estado do outro lado do país. Há semanas que os trumpistas estavam cultivando a ideia de invadir o prédio do Capitólio, compartilhando o desejo e as informações nas mídias sociais como Facebook, Twitter, 4Chan, Parler, etc.
É inegável que existe uma esfera pública intensa e agitada de direita que ajudou a consolidar um certo groupthink (pensamento de grupo) profundamente influenciado pelo nacionalismo branco, supremacia branca, misoginia e excepcionalismo estadunidense. Para muitos que ali se reuniram, havia um profundo sentimento de romantismo que decorre de uma consciência histórica distorcida em relação aos Estados Unidos. Um dos vídeos que se tornou viral e ilustra bem isso foi de uma jovem falando, aos prantos, que ela invadiu o Capitólio para fazer uma revolução. Quando a polícia da capital tirou as grades de proteção e permitiu que a multidão se aproximasse da fachada do prédio, não foi surpresa que a maioria das pessoas tenha ido além dos limites, entrando à força e saqueando o Capitólio. Importante destacar que policiais e militares que não estavam trabalhando e sem o uniforme da corporação, usaram seus crachás e identidades para entrarem sem problema algum, de forma pacífica e causarem tumulto.
O objetivo da multidão não era assumir o governo, mas era impedir o Congresso de certificar a contagem do colégio eleitoral que iria declarar oficialmente que Joe Biden era o vencedor. Por dias, grupos de direita, políticos e figuras públicas vinham divulgando a ideia de que o vice-presidente, Mike Pence, poderia atrasar ou mesmo alterar a contagem. Isso porque o Senado é o órgão que contabiliza os votos do colégio eleitoral, e o vice-presidente, que é o chefe do Senado, é quem abre os envelopes. A esperança dos apoiadores de Trump era que Pence pudesse decidir não abrir todos os envelopes e assim dar a vitória a Trump. Esperando até o último minuto, Pence rejeitou a ideia e deixou claro que permitiria a deliberação de objeções, mas todos os envelopes seriam abertos. E foi o que aconteceu, Pence começou a abrir os envelopes e 13 senadores republicanos se opuseram à contagem de certos estados, alegando fraude. No meio da sessão, a multidão de trumpistas invadiu o prédio e forçou a suspensão do processo. Houve gritos pedindo o enforcamento de Pence por considerarem que a decisão de abrir todos os envelopes foi um ato de traição ao presidente. Ao que tudo indica, havia planos de sequestrar o vice-presidente e conduzir uma execução pública na forca. Além disso, muitos estavam armados e foram encontradas bombas caseiras perto do prédio.
Tudo isso foi feito em nome da pátria. Estes invasores, que inclui neofascistas, milicianos, supremacistas brancos, libertarianos, conspiracionistas e membros das forças de segurança, se auto definem como patriotas e acreditam que estão atuando na tradição dos fundadores do país. Eles se vêem como guerreiros da salvação, mas na verdade, são um produto extremo da crença do excepcionalismo estadunidense.
Quando, finalmente, horas depois, os baderneiros foram retirados, o Senado e a Câmara dos Deputados, retomaram os trabalhos e concluíram o processo de contagem dos votos do colégio eleitoral. No final, a vitória de Biden foi oficializada. Ressalto que dos 535 membros do congresso com direito a votação, 121 deputados e 6 senadores republicanos contestaram a validade dos votos. Os outros 7 senadores mudaram de opinião depois da invasão. É preocupante que 127 membros tenham se mantido firmes demonstrando apoio a Trump após o evento. A meu ver, isso aconteceu por causa do desejo de alguns republicanos em cooptar o apoio popular da base trumpista.
De qualquer maneira, é só um exemplo de como o trumpismo não acabou, só está se preparando para o próximo capítulo.
As cenas da invasão ao Capitólio causaram constrangimentos em muitos setores da mídia tradicional e, nos dias seguintes, um alvoroço nas mídias sociais. Na lógica da mídia corporativa, estas imagens não poderiam estar associadas à democracia dos EUA porque foi visto como um espetáculo quase inacreditável. No mesmo dia e no dia seguinte, tanto pelas grandes corporações que apoiam republicanos e democratas, o evento foi tratado como exceção, a fim de trazer a normalidade à cena política, mostrando que a democracia é estável. Enquanto porta-voz dos republicanos, a Fox News, desenvolveu uma narrativa em que culpou a ANTIFA pela invasão do Capitólio – o que é tão descolado da realidade que até parece uma sátira. Já a máquina de propaganda dos democratas, MSNBC, estava com um discurso muito emocional e apocalíptico, entretanto, com a absoluta convicção na salvação da democracia com a entrada de Biden. A estratégia era encontrar um jeito de chegar até o dia 20 de janeiro, sem contratempos para que Biden seja empossado – isso inclui a possibilidade de um segundo processo de impeachment contra Trump.
Um evento dessa magnitude, não pode ser tratado como algo que vai ter pouco impacto. Isso ficou claro com o alvoroço que aconteceu em inúmeras plataformas online. Trump foi suspenso permanentemente do Twitter, suas contas foram suspensas também no Instagram, Facebook, dentre outras. Apple e Google proibiu Parler, um competidor do Twitter, que tem um grande público da extrema direita, de ser baixado para que Trump não recorresse a esta plataforma. E, a cada dia que passa, Trump tem sido banido de outras plataformas.Esse desespero todo é para que tudo volte ao normal o mais rápido possível, mostrar que mesmo quando o presidente está descontrolado, a democracia está sendo cuidada, nem que seja pelo grande capital. Uma das pessoas que estavam “cuidando” da democracia é Jack Dorsey, CEO do Twitter, que estava de férias na Polinésia Francesa e por chamadas discutia estratégias com seus funcionários de alto-escalão sobre como controlar Trump.
Esse desejo de retorno à normalidade por vários setores da sociedade deve ser entendido também pelo excepcionalismo estadunidense. E tem razões históricas para as pessoas comprarem esse mito.
É difícil exagerar a importância do excepcionalismo no discurso nacional dos EUA. Ele conduz quase todas as lógicas corporativas convencionais. Dentro dessa perspectiva, os EUA são e sempre foram o maior país do mundo. Além disso, são a única democracia verdadeira e estão em uma posição única para julgar quais países são uma democracia e para ajudar aqueles que precisam a se tornar uma. Esta crença é ridícula, eu sei, mas não podemos negar algo que é tão influente e que justifica muitas guerras.
Então, o que é o excepcionalismo estadunidense, de onde vem e como tem se manifestado ao longo da história?
Primeiro, tem que ser visto como um elemento fundamental da identidade estadunidense, em especial, dos WASP (Branco Anglo-Saxão Protestante) – os herdeiros do legado dos colonizadores. As origens do excepcionalismo estadunidense podem ser rastreadas desde a época colonial e melhor ganhou forma no final do século XVIII, com a fundação dos Estados Unidos. Durante essas gerações formativas, foi essencial apresentar uma narrativa de origem que ajudasse a promover uma identidade nacional compartilhada por todos os cidadãos, no caso, apenas pelos protestantes brancos. Essa gênese esterilizada serviria amplamente para estabelecer a base do excepcionalismo. Nesta narrativa, a América do Norte colonial britânica foi retratada como um lugar de asilo para imigrantes que escapavam de governos tirânicos por causa da perseguição religiosa. Destaco que eles foram perseguidos por outros protestantes, por serem considerados radicais. As colônias em território do que seria os EUA foram vistas como bastiões da liberdade religiosa e, é claro, solo fértil para a inovação econômica. As Américas foram apresentadas como o Novo Mundo que se opunha ao Velho Mundo, no caso a Europa. Dentro desta lógica, os protestantes que estavam nas Américas pensaram que não poderia ter sido uma mera coincidência que, logo após a Reforma Protestante, eles se estabeleceram na América do Norte. Para ele era o plano de Deus, sendo, portanto, os fundadores e os seus descendentes o povo escolhido.
Para que essa narrativa funcionasse, foi necessário apagar o genocídio dos povos indígenas e inventar uma história de conciliação entre colonos e os nativos, que permanece até hoje e pode ser vista na celebração do Thanksgiving.
Durante o século XIX, o excepcionalismo foi a base para uma política expansionista do Destino Manifesto que corroborou para que os EUA aumentassem exponencialmente seu território. No final do século XIX e início do XX, esse foi o pretexto para a intervenção militar no Caribe e na
América Central. Durante as décadas de 1930 e 40, foi elaborada uma nova abordagem para a construção do império, tratando os EUA como o “bom vizinho”. Neste mesmo período, o excepcionalismo estadunidense começou a se expandir para a América Latina e nos anos 40 e 50, o principal meio de propagação era a cultura através de rádios, revistas, jornais e produções de Hollywood. Porém, não foi tão fácil fazer com que os latinos caíssem no conto do Tio Sam, houve uma resistência em se acreditar no bom vizinho. Já na Guerra Fria, a abordagem começou a mudar, o foco era promover a democracia, retoricamente, mas a verdadeira disputa era entre capitalismo e comunismo. Foi neste período, que o excepcionalismo estadunidense conquistou muitos dos países das Américas e, não por acaso, na mesma época houve ditaduras militares pelo continente apoiadas por Washington. Posteriormente, essa mesma mentalidade continuou, agora sob o pretexto da guerrra ao terrorismo, justificando a invasão do Iraque e do Afeganistão, a construção de uma rede internacional de tortura, ou sanções econômicas, enfim, a base para a construção do papel autoproclamado dos EUA como a polícia do mundo.
Comparando o Brasil com outros países como o Chile ou os da América Central, o excepcionalismo dos EUA levou mais tempo para se solidificar, foi no governo do FHC que essa visão mundial encontrou uma terra fértil e se mantém até hoje no país.
Milhões de pessoas acreditam que os Estados Unidos podem oferecer algo que nenhum outro país pode. Por exemplo, qualquer um pode se tornar milionário se trabalhar muito, que aqui é a terra das oportunidades e, principalmente, que pode ajudar a criar, estabelecer e fortalecer democracias em outros lugares. Isso se deve a ideia de que o país aparenta ter uma democracia pura e plena – como se fosse parte dos planos de Deus. Infelizmente, o excepcionalismo dos EUA obteve muito sucesso, não só dentro do país e isso reside no fato de encontrar apoio no exterior.
Muita gente pensa que a invasão ao Capitólio no dia 6 de janeiro pode desestabilizar a democracia dos EUA e assim prejudicar o jogo democrático do mundo todo. É uma perspectiva. Outra perspectiva, é que o excepcionalismo faz com que os EUA não seja a referência apenas no campo democrático, mas uma referência geral que exporta também opressões. Um exemplo bem óbvio no Brasil: Sérgio Moro. Quando ele importa a ideia de justiça dos EUA para conduzir a Lava-Jato, ele traz também toda uma lógica de encarceramento em massa e uma (in)justiça que prende por delações e sem provas, usada principalmente nos EUA contra negros, latinos e imigrantes. Isso só é possível porque o Sérgio Moro e pessoas dentro das instituições brasileiras acreditam no excepcionalismo dos EUA e cria uma versão adaptada do excepcionalismo para o Brasil. Além disso, a crença por parte de uma parcela dos brasileiros é o que faz com que os bolsonaristas e muitos neoliberais do centrão vejam os trumpistas como referência.
O trumpismo é exportado também por causa do excepcionalismo, a mesma ideologia que diz exportar democracia.
O que me pergunto é: se, depois da invasão do Capitólio, essa crença começa a ruir? Se, talvez, o excepcionalismo estadunidense comece a ser desmascarado, visto com desconfiança e como realmente é: nacionalismo branco e protestante. Talvez agora, nós estamos vendo o início do fim do excepcionalismo, este produto, esta ilusão, uma ferramenta do império. A possibilidade da morte do excepcionalismo estadunidense no mundo tem a potência de colocar em perspectivas novos horizontes que nos tragam espaços com muito mais potência para reproduzir uma verdadeira democracia. Talvez seja uma rachadura no muro e através dela a gente possa contemplar, globalmente, outras possibilidades de democracia.
Não quero que o cenário que se desdobre aqui nos EUA enfraqueça o governo, a situação piore e fique cada vez menos democrático. Acho que nenhum ser humano deve viver sob facismo. E, além disso, o enfraquecimento das instituições democráticas é dar poder a esse grupo patriota e perigoso que invadiu o Capitólio. E, sem grandes surpresas, aqueles que irão arcar com as consequências mais pesadas de uma instabilidade política são os imigrantes, os latinos, os negros e a esquerda. Porém, também acho importante ter a coragem de tirar o véu do imperialismo que recai sob os nossos olhos e ver que tantas outras formas de organização social têm a resposta para criar um outro mundo, que está além dos impérios.
Para saber mais sobre política e história dos EUA e das Américas siga o podcast Camarada Gringo do selo NINJACast e o canal homônimo no YouTube.