Coalizão Arco-Íris: quando os pobres se uniram contra a violência policial
Conheça a história da Coalizão Arco-Íris liderada pelos Panteras Negras para enfrentar a criminalização da pobreza e criar uma política identitária baseada na solidariedade e não na divisão
Nos tempos de hoje, uma coisa que marca nossas vidas, não importa se você está no Brasil, nos EUA ou no Oriente Médio, é a violência do Estado, especificamente a policial, que é um problema e afeta principalmente as comunidades mais pobres. Muitas pessoas bem intencionadas, tentando achar soluções para mudar o que está acontecendo, acabam por encontrá-las numa política identitária dentro da lógica capitalista – o que também tem seus limites. É em tempos assim, que eu me volto para a Coalizão Arco-Íris e encontro esperança. Uma história sobre como nós podemos imaginar políticas identitárias baseadas na solidariedade em vez da divisão – o que já aconteceu no passado e foi revolucionário. Quando comunidades pobres se uniram contra a violência policial nos Estados Unidos.
No dia 4 de abril de 1969, um ano após o assassinato de Martin Luther King Jr. a Coalizão Arco-Íris foi anunciada por Fred Hampton na cidade de Chicago – a escolha desta data não foi uma coincidência. No início da carreira, King, juntamente com o Movimento dos Direito Civis, se focou num direito básico das comunidades negras: o voto. Depois que conseguiram essa pauta, a verdadeira essência do que eles estavam tentando mudar veio à tona, ficou mais evidente que era uma luta contra a pobreza para mudar realmente a estrutura da sociedade. King, antes de ser assassinado, havia anunciado Poor People’s Campaign, Campanha dos Pobres, com a intenção de unir diferentes grupos étnicos e raciais da classe trabalhadora. Os grupo que faziam parte da campanha eram negros, indígenas, porto-riquenhos, descendentes de mexicanos e brancos pobres.
Quando Fred Hampton anunciou a Coalizão Arco-Íris, ele deu continuidade ao sonho de King numa escala local, em vez de nacional, tornando-o realidade em Chicago. Numa cidade profundamente segregada e desigual, com uma força policial repressiva e abertamente violenta, Hampton conseguiu unir grupos étnicos e raciais dos guetos para não só lutar contra a violência policial mas também cuidar das suas comunidades. Os três principais grupos que formavam a Coalizão Arco-Íris eram o Partido dos Panteras Negras, os Young Lords e os Jovens Patriotas – os dois últimos começaram como gangues de ruas e se transformaram em movimentos socialistas de luta por direitos civis.
O Partido dos Panteras Negras, que era a liderança e a inspiração da Coalizão Arco-Íris, foi fundado em 1966 por Huey P. Newton e Bobby Seale em Oakland, Califórnia, como uma resposta para acabar com o assédio policial desenfreado e a brutalidade com que agiam na comunidade negra da cidade, bem como uma homenagem e perpetuação do legado do líder dos direitos civis: Malcolm X, que havia sido assassinado no mesmo ano. Talvez a parte mais radical do programa do Partido dos Panteras Negras, se a gente entende radical no espírito de Raymond Williams que significa tornar possível a esperança, em vez de se convencer do desespero, foi a transformação das próprias comunidades pela ação direta, criatividade e coragem de confrontar uma estrutura de poder muito mais poderosa e com tendência à violência. Além da presença de uma segurança armada – lembrando que nos EUA o direito à posse de arma está garantido pela constituição -, havia serviços como clínicas médicas, creches, alimentação, atividades extra-escolares, orientação jurídica e outros mais.
Quando os Young Lords e Jovens Patriotas, gangues que haviam sido formadas com a intenção de proteger as suas próprias comunidades da violência policial e de outras gangues, se transformaram em grupos da esquerda organizada, a estrutura do Partido dos Panteras Negras foi a inspiração para eles e seria um dos pontos de encontro e base da Coalizão Arco-Íris.
Os Young Lords era uma gangue de rua do bairro de imigrantes e descendentes de porto-riquenhos. O momento em que eles se radicalizaram foi quando o líder José Cha Cha Jiménez foi preso, após o assassinato de Martin Luther King, quando houve uma onda de protesto no país inteiro e a Guarda Nacional ocupou várias cidades, dentre elas Chicago. No seu tempo na prisão, Cha Cha Jiménez ouvia no rádio notícias sobre os Panteras Negras e se deu conta que a luta dos Young Lords era a mesma deles. A partir daí eles iriam começar a relação com o Partido dos Panteras Negras.
Já a história da gangue dos Jovens Patriotas é talvez a mais importante por parecer inacreditável, quebrando a lógica do nosso sistema. A partir do início do século XX, houve um boom na migração interna de comunidades brancas pobres oriundas da região do Appalachia devido ao declínio da indústria de carvão. A população branca que já estava estabelecida em Chicago, a grande maioria descendente de imigrantes europeus que chegaram no final do século XIX e começo do XX, desprezava os brancos pobres que chegaram na cidade. Por exemplo, nos jornais da época, Uptown, o bairro onde residiam os brancos pobres, era frequentemente descrito como uma comunidade caipira e incestuosa, perigosa e cheia de racistas. Além disso, a polícia também agia com muita violência lá. Neste bairro, de onde vem os Jovens Patriotas, era bem comum entrar em um salão de bilhar e ver uma bandeira da confederação pendurada na parede ilustrando uma identidade cultural distinta.
Inclusive, a própria gangue usava a bandeira dos confederados como símbolo.
A bandeira dos confederados é um símbolo de ódio e está associada ao sul dos EUA durante a Guerra de Secessão, com o lado que queria manter a escravidão. Até hoje a associação a esse regime escravocrata persiste, e numa tradição da supremacia branca. Porém, no caso dos Jovens Patriotas, é mais complexo.
(Antes de continuar a história, gostaria de deixar claro que eu não estou defendendo o uso do símbolo.)
É mais complexo porque o uso começou como uma resposta à opressão de outros brancos e uma tentativa de manter uma identidade local e regional – de um grupo que havia chegado num lugar, mas não se sentia parte da cidade – principalmente pelas condições limitadas financeiras e o abuso dos policiais. Os Jovens Patriotas, se apropriaram deste símbolo num jeito que inverteu esse signo de ódio em símbolo de orgulho, em muitos casos dissociados de uma consciência histórica. O que é um problema.
Após o evento, Lee deu abertura e começou um diálogo com os membros dos Jovens Patriotas. Posteriormente, os apresentou a muitas das ideias englobadas pela ideologia do Partido dos Panteras Negras, e também o resultado do que eles já haviam conquistado em suas comunidades, num período de tempo relativamente curto. Ele também os apresentou a Fred Hampton. Não demorou muito para os Jovens Patriotas reestruturarem sua organização com base nas ideias e práticas do Partido dos Panteras Negras. Eles reproduziram os programas na sua comunidade como café da manhã grátis para as crianças de Uptown e outras formas de apoio.
Se por um lado, eles mantiveram o símbolo da bandeira confederada, por outro eles incorporaram o punho que simbolizava o poder negro à bandeira. Eu acho que depois do convívio com os Partido dos Panteras Negras eles usaram esse símbolo como uma forma de causar choque e ao mesmo tempo para destruir conceitos iconoclastas, para inverter e confundir o jeito que o símbolo era usado. Em muitos sentidos era só pra mostrar que era só um símbolo e que, no final das contas, a aliança com os irmão que também estavam sofrendo repressão e violência do Estado era a coisa mais importante.
Uma coisa que eu acho marcante é o fato dos Panteras Negras terem feito uma aliança e não demandarem a retirada do símbolo, mostra a potência do que é o inimaginável.
Infelizmente, no dia 4 de dezembro de 1969, a polícia de Chicago invadiu o apartamento de Fred Hampton com um mandado de busca e apreensão de armas. Fred Hampton, de 21 anos, e Mark Clark, outro membro do Partido, que tinha 18 anos, foram assassinados no ataque. Logo depois começou uma onda de repressão da esquerda dos EUA que forçou o Partido dos Panteras Negras à clandestinidade, desmontando a Coalizão Arco-Íris – o que não significa que não foi revolucionária, só mostra para nós que não foi forte o suficiente para contestar o poder do Estado. Por isso, o único jeito que o mundo pode repensar nossas próprias comunidades é pensar como podemos criar uma Coalizão Arco-Íris numa escala global e o começo disso é vendo o que temos em comum com os que estão perto e a isso ser a base das nossas relações.
A gente tem muito mais coisas que nos une do que nos separa.
Para saber mais sobre a geografia social da cidade de Chicago e o contexto do final dos anos 60 na cidade em que nasceu a Coalizão Arco-Íris, tem um vídeo no meu canal.