Carta pro meu nêgo
Você está pronta para ajudar o outro a se curar?
Já faz um ano né.
Faz um ano e eu não postei nada, não cedi a pressão das redes sociais de mostrar como tô feliz com isso. Pensando bem, é até sacanagem chegar justo no dia dos namorados pra fazer isso. Mas sabe como é, um ano é tempo de fazer balanço.
Era de se esperar que alguém como eu, consciente dos impactos do racismo nos relacionamentos afetivos e que sabe o quão raro é encontrar um relacionamento sendo nós sendo quem somos, deveria estar nos comemorando desde junho do ano passado. A primeira pergunta que me faço então é: porque eu escolhi invisibilizar o que acontece entre nós?
Também fico pensando primeiro porque não aconteceu antes. Você sempre esteve presente na minha vida e definitivamente falta de afinidades não foi. Pra falar a verdade cresci rodeada de pessoas parecidas como você, teria sido muito confortável pra mim que gente já fosse real oficial há anos. A segunda pergunta é: Porque nós não nos envolvemos antes?
Além disso, cá entre nós, minha vida como ativista teria sido muito mais fácil com você ao meu lado. Não só não seria chamada de palmiteira (termo pejorativo para pessoas negras que se relacionam com brancas) como também teria ao meu lado alguém que me entende, que entende a minha dor. Sabe quanto tempo eu perdi explicando pros meus parceiros brancos o que eu sentia quando nos olhavam na rua? Homens ou mulheres, os binários custaram a entender. E acho que ainda não entenderam. Surge assim a terceira pergunta: Porque preciso de você pra me sentir melhor sobre o que eu faço na vida?
O fato é que nesses 12 meses passamos pelas 5 fases do amor romântico já padronizados pelos psicólogos.
Primeiro nos apaixonamos. Acreditávamos que éramos o match ideal um do outro.
A fase dois foi quando tornarmos parceiros, a famosa sensação de segurança. Fizemos planos, comemorei quando você se formou em direito e você estava lá quando passei a assumir novas responsabilidades na NINJA. Chegamos até a pensar se, juntos, seríamos capazes de trazer mais um pretinho pro mundo.
Como esperado, a próxima fase foi a desilusão. Você não entendeu o por que de tantas viagens, eu questionei o seu machismo e tudo pareceu dar errado entre nós. Parecia a hora de desistir. Demos um tempo pra ver se valia a pena. Valeu. A próxima fase se chama “O verdadeiro amor”. Especialistas dizem que é nela que “as pessoas começam a ver uma ligação entre o seu passado e a forma como agem com seu parceiro. Neste ponto, os parceiros começam a ajudar-se mutuamente a curarem feridas.” Essa fase foi louca, meu preto, e eu ainda não superei tudo que eu tive que admitir pra passar por ela.
Por fim, chegamos agora na última fase. A que sabemos que juntos podemos mudar o mundo! Entendemos que nosso amor não se encerra em nós, que afeta as pessoas em torno de nós e nos responsabilizamos por isso. A insegurança sobre os motivos de estarmos juntos se foram e conseguimos somar forças para trabalharmos juntos. Tá sendo da hora, neguin.
Mas, como dizem nossos filósofos: Romance é romance, amor é amor, e um lance é um lance .
E o nosso não é. Nunca aconteceu.
CALMA – mais fatídico do que ter escrito uma carta pra um namorado imaginário no dia dos namorados em pleno 2018 é o que de fato aconteceu comigo há um ano atrás.
Indo e voltando entre Rio e São, como ainda estou, um cara começou dar em cima de mim. Era mais novo que eu. E persistente. Gato, engraçado e eu tava gostando, mas escaldada como eu, já havia dito não algumas vezes. Tinha acabado de sair de dois relacionamentos seguidos com mulheres e estava de boa.
Nos próximos dias, vendo as tretas dos artistas pretos palmiteiros nas timelines, pensei sobre um fato que o diferencia sobre outros novinhos: O TAL GATINHO ERA NEGRO. E então, a verdade me acertou. Eu nunca tinha ficado com um cara negro na vida. Música dramática ao fundo, o fato de eu ter acabado de fazer tranças e o meu aniversário chegando pesaram e entrei na nóia. Quem eu era na fila do ativismo se aos 26 anos nunca havia amado um homem negro?
Mulheres negras sim. Modeletes, gordas, sérias, engraçadas, ativistas ou não. Inclusive foram com elas que vivi as experiências que relatei acima, lembro de todas no detalhe. Foram ótimas, alguns sentimentos ainda estão aqui, mas não foram homens.
Surgiu então a pergunta real que substitui as três feitas antes:
O que aconteceu na minha vida para que eu anulasse os homens negros da minha vida afetiva e sexual?
Buscando na memória, percebo que não tive boas referências de relacionamentos afrocentrados héteros próximos enquanto eu crescia. Meus tios ou batiam, ou traíram ou abandonaram suas mulheres e filhos. Tinha um que sempre pedia para eu e minhas primas com menos de 10 anos sentássemos no colo dele enquanto comentavam como tínhamos bundas lindas. Meus primos e amigos ficaram com as pretas até que brancas aparecerem. Nem o meu pai passou ileso da análise.
Na tv casais negros não existiam. Ou nos livros, ou vídeo games ou mesmo histórias de ninar. Os pais negros dos meus amigos estavam separados. Meu irmão mais novo começou seus relacionamentos enganando uma menina atrás da outra. Meu imaginário foi construído antes de Lázaro e Thaís, Beyoncé e Jay Z, Jonathan e Lellezinha, Barack e Michelle Obama, Will e Jade. Ainda vivo no tempo em que, segundo estudo do IBGE, 52% das mulheres negras são solteiras e não por opção.
E isso acabou se refletindo no meu comportamento presente e na forma perversa que eu avaliava homens negros, como se eles fossem brancos. Veja bem, eu sou uma pessoa ambiciosa e não tenho vergonha disso. Então pra mim, homem branco da mesma idade que eu que não é de movimento e não tá trabalhando ou tá achando lindo passar um tempo sem fazer nada entre terminar a faculdade e trabalhar na empresa do pai não vai rolar. Ele ir atrás de mais do que os privilégios já entrega de mão beijada pra mim parecia o mínimo. O problema é que fui aplicando a mesma lógica aos homens negros, sem reflexão do porque o homem negro estar desempregado, ou mesmo uma régua real do que era desemprego nos dias de hoje.
Pra mim, que sabe o mar de diferença que existe entre uma pessoa branca e uma negra para superar uma “simples” desilusão amorosa, por exemplo, eu estava nadando em hipocrisia.
Ao fim, meu cérebro condicionou que estar junto a homens negros não daria certo. E que os brancos me descartariam. É aquela fase estranha onde mulheres negras entendem que podem morrer sozinhas.
Depois de superar o ímpeto de não querer expor essa cicatriz e debater abertamente com outras mulheres, entendi que era hora de reconstruir meu imaginário em torno do amor, parar de idealizar meus relacionamentos interraciais e o mais difícil de tudo: estar pronta de fato para um relacionamento afrocentrado.
Passei então o último ano discutindo sobre isso. Ao invés de sair correndo por um preto pra chamar de meu, igual as brancas fizeram com os melhores amigos gays, lembrei das palavras de Sueide Kintê no Latinidades de 2016: Você está pronta para ter um relacionamento com alguém que além de machista, sofre racismo e tem as mesmas feridas que você?
Você está pronta para ajudar o outro a se curar?
Questões que eu já tinha me feito em meus relacionamentos interraciais pareceram muito mais difíceis com parceiros negros. Me responde você:
Vou ter paciência pra explicar o machismo pro meu nego? Vou continuar admirando-o quando ver nele a mesma baixa-autoestima que desponta em mim às vezes? Entenderei que quando ele disputa comigo e eu como pilha estamos reproduzindo uma lógica branca de relacionamento? O que farei se esse “irmão de luta” trair um dos nossos pactos afetivos? Vou denunciar ele no tribunal do facebook como outras feministas tem feito sabendo que quando o homem é preto, a sentença de fato vem? E se ele me bater? Se chegar a esse extremo, preferirei o celibato forçado ou a solidão a dois?
Das poucas conclusões que cheguei, entendi que sem sombra de dúvida não é culpa deles. Nem minha. Nem das palmiteiras. Ou das afrocentradas.
Entendi também que sou controversa – tenho mais pré disposição de relevar os erros dos homens negros do que tenho dos brancos, mas os cobraria em dobro se a pauta fosse racismo. Aprendendo com as outras, entendi que amor afrocentrado não é conto de fadas da Disney, inclusive em relacionamentos homoafetivos.
Pra esse baile do dia 12 de 2018 vou então dançar sozinha, ou com as manas que toparem, enquanto toca “me ame, mas se ame primeiro”.
PS1: No fim, eu fiquei com o cara. Várias vezes 😉
PS2: Feliz dia dos namorados, contatinhos :*