Querido Jesus,

Imagino que esse aniversário não esteja sendo fácil. Na verdade, quase sempre é difícil, mas vamos combinar que a combinação desse ano ficou bem dramática no Brasil, né? O Natal, apesar de bem badalado tem tido pouco de você e eu sinto muito. Além de muito comercial – ou talvez por isso, nesta época do ano, a gente sente as dores e as perdas de uma forma mais intensa. Talvez porque nossas experiências não correspondam às imagens de felicidade vendidas na publicidade, aqui não tem nem neve… Eu não vou falar muito com você, embora queira marcar uma conversa longa sobre o Cristianismo e os maus usos da fé  no Brasil, mas esse papo vou deixar mais pra frente, depois do Natal. Neste momento dramático que vivemos, vou recorrer a quem pode mais – como Chicó nos inspira, em “O Auto da Compadecida”:

Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré! A vaca mansa dá leite, A braba dá quando quer. A mansa dá sossegada, A braba levanta o pé. Já fui barco, fui navio, Mas hoje sou escaler. Já fui menino, fui homem, Só me falta ser mulher. (Ariano Suassuna)

Querida Mãe,

Como você está? Na comemoração do nascimento de Jesus, talvez te ocorra pensar no parto. Como terá sido o parto de Maria? Como foram seus partos? Esperamos que não tenha sofrido violências, como é e foi tão comum, ainda mais entre as mães negras como você. Mãe, a festa do Natal terá que ser bem restrita, né? Mas eu acho que faz uns anos que a senhora não é muito feliz no Natal desde que nossa Rosa se foi.

Mãe, sei que você sempre pensa nos filhos e nas filhas e isso até parece bonito, mas, esse ano, peço que nos ajude a ensinar os/as filhos/as a pensar nas mães e nas avós. Sei que te ensinaram que o certo e bonito era fazer tudo pelos filhos, mas você – melhor do que ninguém, sabe que, muitas vezes, não podemos fazer o que queremos e nem o que nossos filhos e filhas querem. Então, nesse Natal, mamãe, diferente de todos os outros de nossas vidas, não poderemos nos ver fisicamente e você vai precisar usar toda a sua força pra dizer que não pode receber filhos, filhas, netos e netas e toda a família. Eu acho que essa lição também será importante para nós, estamos cansadas de adultos mimados regendo irresponsavelmente a nação.

Ao invés de fazer tudo para os outros, mãe, permita-se fazer algo por você. Comemore o nascimento de Jesus – que sei que você considera tão importante – com toda reverência que a ocasião merece.  Vamos tentar? Se quiser, arrume a mesa e prepare tudo para essa pessoa tão especial: você.  Tem muitas formas da gente ser presente sem a presença física e sem perigo. Quer estar presente no Natal da sua mãe? Cozinhe e deixe na porta dela, envie um presente com a certeza de não estar contaminado, faça uma chamada de vídeo ou de voz, invente seu jeito de fazer um feliz natal para quem você ama sem colocar a vida dela  em risco.

A Bíblia diz que há tempo para todas as coisas. E isso me faz pensar, no contexto que estamos, que há tempo de aglomerar e há tempo de recolher. Vivemos o tempo de recolher. No 2020º aniversário de Jesus, temos dados muito inconvenientes para apresentar em uma festa e, por isso, não vou falar deles – eles até estão registrados em minhas “cartas” anteriores para todo mundo ver.

A informação que não podemos esquecer é que estamos em uma pandemia, o vírus não concede indulto de Natal e encontrar nossas mães, pais, avós e avôs pode significar matá-los. Eu não vou ser responsável por isso. Esse distanciamento necessário e prolongado para quem pode fazê-lo desde o início pode estar insuportável, como podemos notar com o crescimento da contaminação nesse mês de dezembro. Infelizmente, está mais difícil ainda para quem se contaminou, para as equipes de saúde, para quem está na linha de frente da COVID 19, para quem está intubado, para quem está precisando de um respirador e não tem, para as famílias que perderam pessoas amadas e não puderam dar um abraço e um adeus. Já se cumpriu o tempo de uma gestação inteira e já queríamos viver outras coisas, mas ainda não será possível. Nessa guerra contra o vírus, teremos que ter mais paciência.  Logo ali está a vacina e não podemos colocar tudo a perder. De irresponsável, basta o governo central e seus aliados estaduais e municipais. Para quem não pode se isolar e não se contaminou, não abuse da sorte no fim de ano. Lembrem, apesar de tudo, a vida é bela e esse também é um título de um belo filme que pode nos inspirar neste momento.

Querida Madalena,

Eu já tinha definido não escrever mais esse ano e usufruir das férias, mas, ao tomar conhecimento da sua história pelas redes sociais, vi que queria falar com você, uma pessoa que nunca teve férias.

Madalena, eu sinto muito pelo que fizeram com você nesses 38 anos. Uma vida toda de aprisionamento – certamente não há liberdade para uma criança que precisa buscar a própria alimentação na casa dos/as outros. Eu sinto muito por você ser uma vítima dessa sociedade racista, machista e capitalista. Uma menina que passou a vida servindo aos senhores e senhoras de engenho, escravocratas, corruptos, canalhas. Hoje eles não são necessariamente os clássicos fazendeiros de séculos passados, eles atualizaram: são os terríveis cidadãos de bem, brancos, escolarizados e, neste caso, professora e professor, que transferem Madalenas de mães para filhos, como nos tempos da escravidão legalizada.

Madalena querida, eu sinto por você não ter podido ter uma casa e usufruir da convivência com a sua família. É muito difícil morar na casa dos outros, mesmo quando não se trata de uma situação escravizada como a que você viveu. É impossível mensurar as dificuldades e dores pelas quais você passou.

Madalena, como sabemos, era comum no passado, as famílias pobres entregarem suas filhas para pessoas ricas que diziam adotá-las ou criarem como se fossem da família. Elas não eram da família. Essa expressão “quase da família” era e é utilizada pelos patrões/patroas para obter vantagens nas relações de trabalho e não arcarem com os custos do trabalho doméstico. Meninas que não tiveram oportunidade de conviver com sua família, que viveram/vivem na casa dos outros em condições de grande vulnerabilidade e desigualdade. É uma vergonha que ainda seja uma realidade, mesmo depois de tantas lutas por liberdade e por igualdade.

Nestes tempos de trabalho escravizado na casa da escravocrata Maria das Graças e do escravocrata Dalton Rigueira, em Patos de Minas, muita coisa aconteceu no Brasil. As leis para proteger o trabalho doméstico avançaram com a PEC das Domésticas em 2012. Infelizmente aquela turma disfarçada de cidadão de bem, tomou o poder da primeira mulher eleita presidenta em 2016 e as recentes conquistas não saíram do papel para a maioria das trabalhadoras domésticas, mas o mínimo que o judiciário pode fazer é prender seu patrão e a mãe dele.

Apesar de todas as durezas do tempo em que vivemos, Madalena eu quero te falar de uma boa notícia. Apesar das marcas profundas do racismo, do machismo e das desigualdades, as mulheres, as negras e os negros, lgbtqia+, indígenas, pessoas com deficiência, velhos e velhas e muitos grupos que eram considerados minorias (mas que são a maioria), tem levantado para lutar contra as desigualdades e as opressões. Se há 40 anos atrás era tido como natural que as meninas fossem doadas para famílias ricas, hoje não é mais.

Aqui fora a coisa tá feia, mas como te falei há uma rede de mulheres, há muitos coletivos de lutas, há uma rede de solidariedade bem bonita e eu espero que você possa se fortalecer pelas ações dessa rede: conte conosco! Nós somos muitas e temos até deputadas como uma das primeiras deputadas negras a chegar na Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, Andreia de Jesus, que, inclusive, foi doméstica a maior parte da vida. A partir dessa solidariedade entre nós, mulheres, juntas com todas as pessoas que lutam contra as desigualdades e opressões, podemos ter esperança de um dia termos um feliz natal. Estamos ainda no tempo do cuidado e do plantio, logo, haverá colheita. Dias mulheres virão.

Com grande carinho e as melhores energias,

Jorgetânia