Carnavalizar o Congresso Nacional
O Carnaval como heresia. No novo Brasil gospel-populista, sobra marcha para Jesus. Falta espaço para a pluralidade.
Por Pablo Brandão
22 de outubro, e o dia ainda nem tinha café. A TV ligada, esperança de notícia boa. Que a Palestina fosse livre e soberana, que Cuba e Venezuela tivessem eleições sem interferência e virassem democracias de fato, que os países ricos finalmente pagassem a conta da transição energética dos que sustentaram suas fortunas com séculos de colonialismo.
Mas não, não. A notícia era outra: deputados evangélicos, juntos em uma celebração ecumênica, cobrando vaga no Colégio de Líderes da Câmara. A fé agora quer cadeira. E voto.
Não é só uma prece: é estratégia. É teocracia disfarçada de consenso. O Estado brasileiro está na mira de um projeto que mistura cruz e Constituição, altar e orçamento. E quem dança fora da linha já sabe: o alvo tá pintado.
Os dados do Censo 2022 jogaram água no vinho da cruzada neopentecostal: ao contrário do que previam as projeções messiânicas dos seus líderes palacianos, os rasputins de terno, gravata e palavrão, os evangélicos não são ainda um terço da população.
Mas não se enganem: eles não precisam da maioria para dominar. Precisam de bancada. É como se o Congresso fosse templo. Como se o orçamento público fosse dízimo. Como se o Brasil tivesse dono — e não fosse encruzilhada.
O Carnaval como heresia. No novo Brasil gospel-populista, sobra marcha para Jesus. Falta espaço para a pluralidade. Falta dinheiro para o carnaval. Falta respeito para o axé. Falta Estado laico. Falta segurança. Falta coerência entre pregação e prática de vivência. Os líderes evangélicos estão longe de testemunharem o Evangelho de Jesus Cristo. Querem mais o poder do que o Reino dos Céus.
Profetas da intolerância. Enquanto santificam a política, perseguem as profanações que nos constituem: as festas, os terreiros, as escolas de samba, as festas juninas, os blocos afros, as quermesses, os afoxés. Em nome da moral, cortam verbas. Em nome de Deus, proíbem a cultura. Em nome de Deus criminalizam a alegria. E tudo, dizem, ser problemas orçamentários, coisas de má gestão.
Foi assim no Rio com Crivella: cortou a subvenção do samba e redirecionou a verba pra campanha de difamação. Deixou escola sem desfile e santo sem altar. Usou a máquina pública para lavar o racismo com a espuma da oração. E, de quebra, quebrou o Rio de Janeiro, sumariamente derrotado foi pelo povo do samba, do axé e por Zé Pelintra.
Essa lógica se espalha: gestores cancelam o carnaval popular para bancar megaeventos gospel, violando o princípio da laicidade e pisoteando a impessoalidade do Estado. Uma cruz fincada no erário.
Samba é território, cultura é disputa. Companheiros e companheiras: o samba tem lugar onde o Estado não chega. Comunidades, favelas, periferias e subúrbios, duas instituições mobilizam gente, igrejas e escolas de samba. Ambas oferecem amparo, rede e corpo coletivo. Mas uma impõe salvação. A outra celebra a existência. É nesse contexto que o samba vira resistência.
Não é só festa: é projeto político. É disputa de narrativas. É quando a “favela pega a visão e entende que não existe ‘Messias’ de arma nas mãos”. Samba é herança de terreiro, é cidadania negra. É geração de renda, é arte que educa. Arte é rebeldia. Escola de Samba é Escola de Vida.

E do norte ao sul, o samba vive. Em Manaus, onde tem o maior sambódromo do país. Em Belém, na Aldeia Cultural e em Tucuruí, Marabá, Icoaraci e Monte Alegre só no Pará. No Maranhão, a histórica Flor do Samba. Teresina, Fortaleza e Natal. Na Paraíba as companhias juninas metade do ano são quadrilhas, na outra metade escolas de samba — e está tudo bem, o importante é brincar. Recife, onde o Galo canta alto, mas o samba também tem sua quadra. Os gaúchos ostentam quase 500 escolas de samba em mais de 70 cidades. Florianópolis vai construir um novo sambódromo, maior e coberto, e pretende tirar o título da pequena Joaçaba — cidade do centro-oeste catarinense, com 30 mil habitantes e 4 escolas de samba, cada uma com 2 mil componentes e que detém o título de capital do samba.
Minas são muitas. E nelas, o samba também é plural. Tem agremiação em Uberlândia, Juiz de Fora, Belo Horizonte, Nova Lima. Do Triângulo, ao Jequitinhonha, da Zona da Mata à Região das Vertentes. Em cada dobra do mapa mineiro, tem gente bordando fantasia e afinando tamborim. E se é verdade que pra ganhar no Brasil precisa ganhar em Minas, o samba já entendeu: ele é voto, é povo, é projeto.
Até na capital do agro, o samba finca bandeira. Goiânia e Goiás Velho — onde o sertanejo é devoção — também têm suas escolas. E em Formosa, no Entorno do DF, já tem escola de samba — Corumbá ostenta o título de a capital do Centro-Oeste do samba.
Em São Paulo, o samba cresce. O Anhembi já não dá conta. Tem sambódromo em Batatais, Santos, Bauru, Ribeirão Preto, Marília, Campinas, Franca, Mogi das Cruzes, São Carlos e mais, até em Paulínia, Jacareí e Guaratinguetá. O Rio que se cuide: o samba paulista anda organizado, profissional e popular. São Paulo samba e faz escola. Desfilando em linha reta, e com firmeza.
Mas o Rio ainda é o coração. Mangueira é escola, é pátria, é referência social com impacto mundial. E Nilópolis — terra da Beija-Flor — Nilópolis existe porque a Beija-Flor existe e já não mais o contrário, resultado da forte identificação do povo com a agremiação. Cidade com o maior número de praticantes de religiões de matriz africana do estado em termos proporcionais, é o maior PIB per capita da Baixada Fluminense e possui os melhores índices educacionais da região. Coincidência? Não. É o prodígio do samba, afirmaria Saturnino Gonçalves.
A política entra na avenida. Em 2018, surge a FENASAMBA. Em 2023, nasce a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Samba e Valorização do Carnaval. Sob a liderança de Washington Quaquá (PT-RJ), então Deputado Federal e vice-presidente nacional do PT, a frente reúne quase 200 parlamentares — uma das maiores da Câmara — e é resistência institucional à cruzada moralista.
Em menos de dois anos, a Frente Parlamentar fez mais pelo carnaval no Congresso do que todos os outros períodos legislativos juntos. Ali, se soma o nome de um companheiro do samba, da fé e da memória: o deputado Reimont (PT-RJ) — católico, praticante, militante forjado nas comunidades eclesiais de base, defensor da cultura viva e da laicidade. Reimont é autor do PL 5820/2023, que propõe o Programa Nacional de Salvaguarda, Fomento e Incentivo ao Samba Brasileiro, reconhecendo o capital humano das escolas como patrimônio. Reimont sempre colocou os seus mandatos na “comissão de frente” da proposição de bons projetos, desde quando vereador da cidade do Rio.
E o Rio de Janeiro virou termômetro: 30 dos 46 deputados fluminenses aderiram à nossa escola parlamentar de samba. E tem de todas as bandeiras partidárias: PT, PSOL, PP, PSD, União Brasil. Tem a Benedita da Silva e o pastor Henrique Vieira, a Laura Carneiro e o Ricardo Abraão. Tem pluralidade.

Tem força feminina nessa frente que bota o samba no Congresso. Maria do Rosário, Talíria Petrone, Denise Pessôa, Erika Kokay, Jandira Feghali — mulheres que conhecem quadra de escola de samba como quem conhece trincheira.
Duas delas, gaúchas de batuque firme, merecem destaque especial. Maria do Rosário (PT-RS) é autora do projeto da Lei Nelson Sargento, que reconheceu as escolas de samba como patrimônio da cultura brasileira. A lei foi sancionada pelo presidente Lula, com assinatura das ministras Margareth Menezes e Anielle Franco, e do então ministro da Justiça, Flávio Dino.
A outra é Denise Pessôa (PT-RS), atual presidente da Comissão de Cultura da Câmara. Mas antes disso, foi presidente da Liga das Escolas de Samba de Caxias do Sul. Sua militância nasceu numa quadra, não num comitê. Hoje, ela é linha de frente na luta por uma política nacional para o Carnaval — com orçamento, com memória e com dignidade.
Essa galera entendeu: o samba não pode ser só enredo, precisa ser ferramenta de disputa institucional. Nas eleições de 2026: ou a gente assume a direção ou o Brasil vai desandar. Dois terços do Senado serão renovados, precisamos construir unidade na ação, exigir assinatura de termo de compromisso público com o samba, o carnaval e a cultura. Os parlamentares terão em mãos mais de 50 bilhões em emendas. E aí?
Vamos deixar esse dinheiro ir para o púlpito? Ou vamos fazer ele circular pelas quadras, barracões, projetos sociais, pelas favelas que constroem o espetáculo que o mundo inteiro aplaude? Ou o samba se organiza politicamente, ou será dizimado a pretexto da moral.
Não dá mais pra ser só resistência cultural. É hora de ser potência política. O altar é branco, mas a fé é preta. A laicidade do Estado é o último escudo contra a purificação moral dos corpos, das cores, das vozes. E ela está em risco.
Pablo Brandão é mangueirense, historiador, pesquisador e gestor cultural dedicado à valorização das memórias, identidades e práticas populares do Brasil. Atualmente é consultor da UNESCO, auxiliando no processo de regulação da Lei Nelson Sargento e compõe a Governança da Campanha Nacional da Diversidade Criativa do Brasil rumo a COP-30+, representando a Mangueira Sustentável. Atua na articulação entre cultura, políticas públicas e sustentabilidade, com foco na história do samba, nas comunidades do Rio de Janeiro e na construção de modelos solidários de desenvolvimento cultural e social.