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Carnaval: enredos africanos não são repetição vazia, são a urgência de lembrar
Dizer que os desfiles inspirados em África são “iguais” é desconhecer a vastidão e a diversidade do continente que foi espoliado para erguer este país.
Por Walkíria Nictheroy
O Carnaval é mais do que brilho e ritmo. É rito, é luta, é reza e resistência. É tambor que ecoa o lamento dos porões negreiros, é dança que desafia a dor. O desfile das escolas de samba é o palco onde a história do Brasil se refaz em cores, onde a voz dos excluídos se ergue mais alta do que nunca.
Paulo Barros, carnavalesco renomado, entoou essas palavras como se fossem uma crítica técnica, mas o que transparece nelas é a repetição de um racismo que se recusa a morrer.
Dizer que os desfiles inspirados em África são “iguais” é desconhecer a vastidão e a diversidade do continente que foi espoliado para erguer este país.
Dizer também que os enredos sobre religiões afro-brasileiras são “difíceis” é, na verdade, reafirmar o preconceito que faz com que nossos credos sejam demonizados e perseguidos até hoje. É a prova do quanto o Brasil e o povo brasileiro desconhecem de si mesmos e suas origens. O candomblé e a umbanda são parte fundadora do samba, pois foi nos terreiros que ele encontrou abrigo quando era visto como coisa de marginal. A relação entre Carnaval e religião é sagrada: na Sapucaí, o profano e o divino se abraçam, como sempre foi na cultura do povo negro.
A história das escolas de samba é, em si, a história da negritude no Brasil. Fundadas por descendentes de escravizados, perseguidas, marginalizadas, reprimidas pela polícia, resistiram e se tornaram o coração da maior festa popular do planeta. É através dos enredos que as escolas recontam os silenciamentos, que as narrativas negadas encontram espaço para brilhar. Negar a importância disso é negar o próprio Carnaval. Em sua essência, em sua origem, colocando em risco seu futuro.
Lembro-me da história recente do carnaval, onde em busca de patrocínio, as escolas criaram enredos sobre shampoos, laticínios e produtos das grandes marcas que os financiaram. Vimos belíssimos espetáculos sem alma, mas que em nada preocuparam tecnicamente os críticos. A propagação dos enredos baseados nas tradições afro indígenas, nos faz retomar o que de fato deve ocupar as avenidas: a cultura do povo!
A falta de entendimento não está nos enredos. Está no racismo que não quer enxergar. Está na mente que rejeita o sagrado que não veste batina nem fala latim, que falsamente se fez parecer mais fácil para um povo que teve suas tradições e ancestralidade expurgadas. Mas que resistiu, e o carnaval está aí para provar.
No primeiro semestre de 2024, o Brasil registrou um aumento de 80% nas denúncias de intolerância religiosa. As leis 10.639 e 11.640 que obrigam o ensino da cultura afro-brasileira e indígena nas escolas, ainda enfrentam gigantescos desafios para chegar às salas de aula, em especial pela invasão neopentecostal dos lares e, por consequência, das salas de aula. A crítica a negritude nas escolas de samba lembra-nos vem daqueles que acharam que as cotas eram demais, que os negros agora podiam tudo e que o país estava sendo tomado pelo candomblé, ameacando as famílias cristãs brasileiras. Os números estão aí para provar que nada disso faz sentido, embora empolgue a multidão conservadora. O Brasil segue tentando ser o que nunca foi, um espelho europeu. Em tempos de café com o deus pai – violento e repressor-, é, na verdade, um alívio saber que o carnaval falará dos caboclos que curam, dos pretos velhos que acolhem e pombas giras que subvertem.
O desfile das escolas de samba não é um espetáculo para agradar a uma elite entediada. Ele é griot, é contador de histórias, é a voz dos que vieram antes e dos que virão depois. Reduzir os enredos africanos a uma repetição vazia é não entender que o que se repete, na verdade, é a urgência de lembrar. E não somente por necessidade histórica, mas pela reafirmação de que estas culturas são ricas em beleza, complexidades, sofisticação e diversidade que encantam os olhos e corações na Sapucaí. Se nos próximos cinquenta anos o carnaval falasse somente das culturas afro-indígenas, certamente ainda não teríamos contado tudo o que foi apagado nestes quinhentos anos em que lutamos para levantar este país resistente e subversivo.