Por Susana Prizendt

Linhas curvas, presença marcante das cores vermelha e branca, idade avançada, fama incontestável. Estamos falando do Papai Noel, símbolo do período natalino. Mas poderíamos ter nos referido a outro ícone de peso: o logotipo da bebida industrializada centenária que se tornou onipresente no planeta, a tão amada quanto odiada Coca-Cola.

Se você pensa que as similaridades entre as duas entidades globalizadas iriam parar por aí, se enganou tão redondamente como a barriga do bom velhinho. Além de se infiltrar nas mesas natalinas de povos do mundo todo, dando um chega para lá em bebidas tradicionais milenares, a marca do refrigerante mais consumido do planeta também se tornou a “cara” do Natal para muita gente, sobretudo em países como o Brasil.

Boa parte desse feito pode ser atribuída a uma ação marqueteira, que capturou o imaginário da população, ao criar cenários móveis repletos de luz, música e personagens cativantes. São os caminhões inconfundíveis das Caravanas de Natal da Coca-Cola, iniciativa que há mais de uma década se tornou referência em muitos territórios das cinco regiões do país, e que também ocorre em outras nações assediadas pela marca.

Há quem aguarde a passagem do desfile ansiosamente, ano após ano, levando o avô, a avó, tias, tios, as crianças e até o novo bebê de colo para se encantar com o show audiovisual, em que Papai Noel aparece sorridente, acenando para a multidão. E essa sedução ocorre mesmo sem a distribuição de brindes, algo que costuma atrair as pessoas no mundo publicitário. É isso mesmo, você não vai ganhar nem uma coquinha durante a apresentação – afinal, o presente é o próprio “espetáculo”, e quem vai, vai somente para prestigiá-lo.

É que, como a empresa mesmo diz, trata-se de… MAGIA. Seria a Magia Natalina, como está no slogan da campanha? Certamente que não. A magia a qual nos referimos é a do dinheiro. Recriar os cenários típicos da estória de Noel, com suas renas, seus duendes, seu trenó… em grandes veículos que percorrem imensas distâncias todos os dias, se apresentando em mais de 150 cidades (93 delas sob responsabilidade da Coca-Cola FEMSA e 60 delas sob responsabilidade da Solar Coca-Cola), por um período de mais de um mês, é para quem tem bolsos bem recheados.

Além disso, toda a publicidade envolvida na campanha deve ampliar bastante a verba que foi gasta com a superprodução, apesar da divulgação “espontânea” feita pela mídia local e pelas prefeituras das “abençoadas” cidades em que as Caravanas passam. Quanto realmente se investe, confesso que não sei. Esses números são resguardados pela empresa. O que eu sei é que, com certeza, é um valor muito maior do que o orçamento anual da área da cultura de muitos desses municípios. E que, sem sombra de dúvidas, a quantia de dinheiro gasta é muito, muito menor do que os rendimentos obtidos pela corporação com essa jogada marqueteira.

Mas, se você quer um parâmetro, o gasto mundial que ela tem com publicidade por ano está estimado em 4 bilhões de dólares. O valor é o equivalente ao lucro obtido no terceiro trimestre deste ano, cerca de 3,7 bilhões de dólares (alta de  29% em relação ao mesmo período de 2024).

Mascotes estapafúrdios

A campanha de divulgação das Caravanas conta com um atendimento individualizado pelo whatsapp, mostrando mais uma vez que as Big Foods e as Big Techs sabem muito bem agir em conjunto, reforçando-se umas às outras, como já abordamos em um artigo que fala sobre esse “casamento lucrativo”, publicado pelo Outras Palavras.

Ao clicar num botão no site da marca, você cairá num perfil do ZAP chamado Ajudante de Natal da Coca-Cola. A primeira mensagem que recebe é um AU AU AU, logo acompanhada de um “quer dizer” e depois de um HO HO HO. A foto do perfil esclarece a presença dos latidos: ela é do Nico, um simpático cãozinho São Bernardo com um barrilzinho com o logotipo do refrigerante pendurado no pescoço. Ele irá guiar você para que saiba mais sobre as Caravanas e para que você crie seu próprio papel de carta personalizado com a identidade visual da iniciativa. Você só tem que escolher uma opção para “continuar compartilhando a magia natalina”.

Quer dizer, não é assim tão fácil. Primeiro precisa fornecer alguns dados pessoais. Então, no meu caso, a aventura terminou antes de começar porque me recusei a passar qualquer informação para a gigante capetalista – já que sabemos que, hoje em dia, os nossos dados são os verdadeiros produtos valiosos para o sistema. No entanto, imagino quantas crianças, jovens e adultos não manifestaram a mesma objeção que esta gata escaldada que vos escreve manifestou.

Mas porque cargas d’água a Coca escolheu o tal cão como mascote da campanha? Bem, a paixão por pets nunca rendeu tanto dinheiro como atualmente. É um mercado bilionário. Filhotes de cachorro são sempre uma fofura, transmitem inocência e cativam até quem costuma rosnar quando você ousa dar um bom dia. O nome Nico faz referência ao santo que muitas pessoas identificam com o Papai Noel ou Santa Claus: São Nicolau.

Além do mais, não é qualquer espécie de cão. É um São Bernardo, originário de regiões frias que combinam com a simulação de “clima de inverno” do Natal, e conhecido como um bicho que salva pessoas em situação de risco, sobretudo em nevascas, fenômenos climáticos extremos. Pescou a ideia?

Sobre essa associação da marca com uma figura salvadora, podemos perguntar: caso o cãozinho levasse mesmo a bebida gelada, cujo logotipo está no barrilzinho, ao invés de algo que aqueça, para alguém que está congelando na neve, iria ajudar a salvar a vida desta pessoa?! É uma boa pista para revelar o que a empresa realmente faz em relação aos cuidados com os seres humanos e a natureza.

O mascote oficial da marca, um urso polar, também demonstra essa tentativa de cooptar a causa da defesa da vida e distorcer a realidade. Enquanto diz que refresca o planeta, a corporação está umbilicalmente associada à aceleração da crise climática e ambiental que nos assola, responsável pelos tais fenômenos extremos, como as próprias nevascas. Quer ver como?

Do pet ao PET

Para começar, seria mais coerente a Coca adotar como mascote uma garrafa PET do que um pet que é um cãozinho, ainda mais uma raça de cão conhecida por seu papel de salvar a vida de pessoas. Quanto ao urso polar, é impressionante o sarcasmo demonstrado com sua escolha. Basta dizer que ele é um dos animais mais conhecidos pelo imenso risco que sofre devido ao derretimento das geleiras e à elevação dos oceanos, processos que as transnacionais afogadas em petróleo, como as de bebidas envasadas em plástico, vêm inquestionavelmente intensificando.

E não é apenas aumentando a temperatura do planeta que empresas como a Coca-Cola vêm contribuindo para apressar o fim dos tempos. Os resíduos inorgânicos que ela gera, sobretudo formados pelo PET das garrafas “recicláveis”, têm inundado rios, mares, oceanos e chegado até em refúgios paradisíacos em que nenhum ser jamais ouviu a palavra refrigerante. E eles se desmancham em pedaços que podem se enroscar em pássaros, tartarugas, peixes, moluscos… levando esses animais à morte.

Com o tempo, essas embalagens se fragmentam até virarem pedacinhos minúsculos, invisíveis aos olhos nus. São os microplásticos, contaminantes que já invadiram a teia alimentar – ao serem ingeridos por espécies que, por sua vez, serão ingeridas por outras espécies, das quais nos alimentamos, chegando ao nosso organismo. Já temos microplásticos no estômago, no intestino, nos pulmões, no cérebro e até no cordão umbilical, mostrando que as novas gerações estão nascendo com esse “presente de boas vindas” das Big Food em seus delicados corpos.

Se você é tutor de um bichinho, como um gato, um cachorro ou até um papagaio, saiba que provavelmente ele tem fragmentos de PET em seu organismo, o que pode gerar problemas de saúde que causam bastante sofrimento. Sejam os nossos amados pets, sejam os animais selvagens que habitam os quatro cantos do mundo, ou sejamos nós, os seres humanos, todos os seres viventes somos impactados negativamente pelas empresas de refrigerante, o que revela a cara de pau da adoção de mascotes como o cãozinho salvador de vidas e o urso polar vítima da fritura climática.

Como tudo em relação a essa empresa poderosa envolve recordes, ela tem sido a campeã no ranking da poluição plástica mundial. É o que apontam organizações como a coalizão global Break Free From Plastic, que vem revelando que essa liderança existe desde 2018, deixando nítido que a corporação não está tomando medidas quanto ao problema; e a Oceana, que produziu recentemente um vídeo chamado O mundo poluído pela Coca-Cola, no qual alerta que ela tem retrocedido nas práticas ambientais e que, só em 2023, gerou um volume de 3,4 bilhões de quilos de embalagens, material suficiente para dar 100 voltas ao redor do planeta. Se você pensar no “peso-pena” de uma garrafa PET (cerca de 50g), poderá vislumbrar a quantidade absurda de garrafas necessárias para formar todos esses bilhões de quilos.

Nas palavras de John Hocevar, diretor do Greenpeace EUA: “Ano após ano, a Coca-Cola inunda o mundo com mais resíduos plásticos, com enormes consequências para a saúde humana, a justiça ambiental e a biodiversidade. As lideranças da Coca-Cola parecem acreditar que, se continuarem a colocar outdoors sobre reciclagem, ninguém perceberá que sua pegada de plástico continua crescendo enquanto abandonam seus objetivos e compromissos”.

Por falar em Greenpeace, não dá para ignorar o tamanho do Greenwashing praticado pela empresa de bebidas mais famosa da galáxia, que vai bem além dos outdoors sobre a tal reciclagem (que não acontece como deveria na vida real, como mostra o Atlas do Plástico), e atinge setores como reflorestamento e educação ambiental, vendendo uma imagem muito diferente do que a realidade nos mostra. E o mascotinho com apelo salvador da campanha das Caravanas de Natal é só mais um elemento dessa lavação verde.

Pega esse sabor… (ou não!)

Mas, se as embalagens são uma desgraça inegável, o que falar da bebida em si? Zilhões de estudos científicos já mostraram para quem quiser ver que esses líquidos ultraprocessados são terríveis para a saúde física e mental das pessoas. A Revista Lancet, referência internacional em ciência, acaba de lançar um conjunto de materiais sobre esse tipo de produto, trazendo dados robustos sobre os danos que provocam.

Eles estão diretamente ligados à explosão das doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) no mundo. Síndrome metabólica – um mix de obesidade, diabetes e pressão alta – é um dos presentes que Coca e Cia vêm nos dando, todos os dias, e em doses generosas como suas imensas garrafas cheias de refrigerantes. Aliás, você saberia dizer a quantidade de açúcar contida em cada uma? Vale a pena descobrir. A indústria canavieira, uma das mais envolvidas com exploração de trabalhadores/as e destruição ambiental, sabe muito bem esses números e se refestela com essa “abundância de doçura”.

A quantidade exagerada desse ingrediente é mesmo motivo de muita preocupação. E não estamos falando apenas do aumento de cáries, algo que se agrava pelo fato da bebida ter a presença de aditivos acidificados que desgastam os dentes. Os problemas seguem boca adentro. Se olharmos para o aparelho digestivo, o consumo diário de 1 a 2 copos de bebidas adoçadas aumenta em 59% o risco de doenças ligadas à digestão de alimentos, como gastrite, disbiose e úlceras, segundo material produzido pela ACT Promoção da Saúde.

Será que a solução para continuar sentindo o gosto desses produtos, sem detonar seu organismo, seria substituir o açúcar por outros adoçantes menos calóricos, optando pelos refrigerantes zero que essas empresas tanto enaltecem, em propagandas cheias de leveza e refrescância? É o que nos recomenda o slogan da Coca diet, “Pega esse sabor”. Fica a questão: será que a gente deveria mesmo pegar – e ainda se desdobrar para ficar com a consciência tranquila em relação aos efeitos no nosso corpo?

Tudo indica que não… As versões diet são tão ou mais prejudiciais à saúde, como revelam pesquisas recentes. Uma delas constatou que alguém que toma uma lata de refrigerante ao dia pode ter um aumento da chance de sofrer de fígado gorduroso (uma condição que pode levar à morte) de 50%, se ingerir a versão com açúcar. Mas esse índice salta para 60% (10% a mais!), se ele ou ela ingerir a versão dietética. Já na parte circulatória, estudos mostram que, se o consumo for de 2 a 3 copos ao dia da versão diet, o aumento do risco de problemas é de 52%.

E, seja açucarada ou dietética, a bebida industrializada à base de cola contém muito ácido fosfórico, que pode reduzir a densidade óssea. Mais uma ironia, já que a marca propõe a realização de atividades físicas como maneira de controlar a obesidade. Com ossos frágeis, quem consegue praticar esportes? Considerando a ausência de nutrientes no produto (que acaba sendo consumido no lugar de opções naturais), de onde viria a vitalidade para ter uma vida atlética? Mesmo se ele for ingerido no lugar de um simples copo de água, ainda assim será prejudicial a quem se exercita, já que não vai  nos hidratar como a água nos hidrata.

A ilusão de que a Coca Zero é uma bebida relativamente saudável vem atingindo até mesmo profissionais de saúde. O FoodWashing feito pelas corporações em relação à “leveza” da bebida gerou uma banalização de seu consumo, algo que comprovadamente está associado ao ganho de peso, já que adoçantes artificiais confundem o cérebro das pessoas e fazem com que sintam mais e mais vontade de ingerir algo doce, aumentando a quantidade do que comem ou bebem no dia a dia. Por falar em cérebro, essas substâncias também têm acelerado o declínio do órgão. Quem consome regularmente tem uma perda 62% maior da capacidade cognitiva, sobretudo relacionada à memória e à fluência verbal.

O sabor e as doenças que “pegam” para a vida toda 

Se as Caravanas de Natal encantam sobretudo as crianças, não é por acaso. Sabemos que o vício em ultraprocessados costuma se iniciar cedo, justamente com essas bebidas repletas de aditivos, que geram uma sensação de prazer praticamente irresistível. E, muitas vezes, atropela os mesmos bebês de colo que ficam hipnotizados pelo show natalino itinerante, já que a bebida é oferecida a eles até mesmo na mamadeira. O segredo de ter consumidores/as fiéis é começar sua conquista do começo, não é?

Só que, se você acha que o tal começo é a primeira infância, errou o alvo… Ele ocorre ainda no útero, quando as mamães ingerem a bebida ultraprocessada e ela altera o líquido nutritivo que alimenta o bebê, influenciando o desenvolvimento do paladar. Essas crianças vão nascer com um potencial maior para comer e beber o que “aprenderam” a gostar durante o período que passaram sendo gestadas. Se for algo cheio de açúcar e aromatizantes artificiais, a indústria alimentícia está feita porque terá clientes garantidos pelas próximas décadas. O mesmo ocorre no período de amamentação, já que o leite materno também é alterado pela alimentação da mãe.

Começando a ser consumidoras cada vez mais cedo, as novas gerações estão sofrendo com doenças que costumavam ocorrer só na fase adulta ou na terceira idade. Hipertensão, diabetes, esteatose hepática, entre outros problemas, podem acompanhar essas pessoas durante a vida, fazendo a festa das Big Pharma, que vão fornecer remédios continuamente para ajudar a controlar os desequilíbrios gerados pelas Big Foods.

E nem mencionamos a alta na ocorrência de câncer na infância, algo que um artigo que escrevi em 2013 para o Relatório de Direitos Humanos no Brasil já constatava, reunindo dados a partir de pesquisas da época, como as realizadas pela Dra Silvia Brandalise, oncologista pediátrica. Se sabemos que uma alimentação baseada em produtos ultraprocessados (UPPs) aumenta sensivelmente a possibilidade de desenvolver a doença, seria de se esperar que organismos ainda não plenamente desenvolvidos, como o das crianças, fossem sofrer expressivamente com a popularização desse tipo de produto.

Considerando o conjunto de substâncias com potencial tóxico ou mesmo carcinogênico aos quais os bebês e as crianças pequenas têm sido expostas, é possível compreender porque organizações não governamentais que tratam de meninos e meninas que sofrem com leucemia e outras formas de câncer precisam fazer campanhas de arrecadação de fundos cada vez mais milionárias.

Com isso o FoodWashing, que já foi desmascarado na questão do “zero açúcar saudável”, ganha outros contornos. As próprias corporações que fabricam ou comercializam alimentos industrializados, como o MC Donald’s, mergulham com tudo em ações em prol de ONGs como o GRAACC – Grupo de Apoio ao Adolescente e a Criança com Câncer -, que também tem shoppings (templos do fast food) e transnacionais do setor químico (experts em criar substâncias viciantes) em sua lista de parceiros.

Tomando no…

Se há gente que começa a tomar Coca-Cola na mamadeira, há quem cresça e passe a tomar direto do gargalo da garrafa, ingerindo litros diariamente, e sofrendo as consequências desse alto consumo no corpo, no comportamento e no bolso. Mesmo que os refrigerantes da marca não sejam caros (se compararmos com um suco natural ou uma água de coco), eles vêm sendo ingeridos no lugar de uma bebida que, se não é gratuita como deveria ser, é muito mais barata, sobretudo se vier de um filtro caseiro. Estamos falando da boa e velha água (talvez já não tão boa, mas veremos isso mais pra frente).

Imaginem o esforço que uma família faz para comprar o refrigerante tão desejado, em meio a um orçamento para lá de apertado. O impacto econômico poderá atrapalhar bastante a compra de comida de verdade e aumentar o consumo de outros UPPs com valores acessíveis, como salsicha e macarrão instantâneo. Mas, se existem impactos financeiros individuais, existem os coletivos – e o orçamento da saúde pública vem sendo pressionado com a quantidade de doenças crônicas decorrentes dessa rotina alimentar nada saudável, para não dizer tóxica.

E a desgraceira econômica não se restringe ao prejuízo que as Big Foods, como a Coca-Cola, trazem ao ministério e às secretarias estaduais e municipais da saúde. Elas têm usado uma quantidade de água astronômica. Para produzir uma garrafa de 600 ml do refrigerante, gasta-se em torno de 35 litros de água, segundo o que foi averiguado pelo O Joio e o Trigo a partir de um relatório da empresa feito em 2010. Não é coincidência que essas empresas estejam disputando o controle de fontes e de territórios hidricamente abençoados, como a Serra da Moeda, em Minas Gerais. Fora do Brasil, os casos também se sucedem e tendem a ficar mais dramáticos com a piora da situação do clima.

Os resultados: água mais rara e cara para a população, que precisa se defender na justiça para não ser vítima de sede em meio a locais que sempre foram plenos desse líquido vital. E, além da sede e da carestia, temos a contaminação química que acompanha a produção das bebidas. Além dos microplásticos das garrafas descartáveis, temos as substâncias nada inocentes, contidas nas fórmulas dos produtos, desfilando por rios e mares, e chegando às nossas torneiras. Ponto para o adoecimento das pessoas e do planeta.

E tudo isso com fartas isenções de impostos, como denunciado pela campanha Mamata dos Refrigerantes e pela plataforma Doce Veneno, iniciativas de organizações sociais que fazem parte da Aliança Pela Alimentação Adequada e Saudável, em sua luta constante pela regulação desse mercado bilionário. A batalha atual é para que esses produtos sejam taxados como danosos na Reforma Tributária, passando a se enquadrar em uma alíquota condizente com o mal que causam.

Desafio pesado como o bolso dessas gigantes corporativas: o lobby delas ameaça nos brindar com uma taxa que teria como teto míseros 2%, o que ampliaria as isenções atuais, como mostra a nota técnica Tributação anti-seletiva? O caso excêntrico da indústria de refrigerantes no Brasil. Para termos chance de encarar e vencer mais esse ataque, é preciso da participação massiva da sociedade no processo.

Aprofundando essa reflexão, sabemos que os prejuízos financeiros até podem ser computados, mas há valor estimado para o sofrimento que um câncer gera em um ser humano, muitas vezes, quando ainda é uma criança? E aqui chegamos em um outro tipo de valoração, pois a destruição de nossa saúde e de nossos ecossistemas significa muito mais do que um número numa planilha. Significa a possibilidade de seguirmos vivendo ou não com condições minimamente viáveis.

Se as receitas natalinas já trazem uma forte herança colonial, enchendo as mesas brasileiras com comidas típicas do inverno (estação que ocorre nessa época no norte global), como nozes e frutas secas, a entrada de UPPs nas ceias trazem uma perda da nossa cultura alimentar ainda mais sensível. Haveria valor em dinheiro que pudesse indenizar esse apagamento?

Papai Noel e suas Noeletes

Por falar em apagamento, estamos assistindo a uma onda de misoginia avassaladora. As manifestações de ódio contra as mulheres têm crescido e os casos de feminicídio vêm chocando o país, o que gerou uma grande mobilização e expôs uma ferida que muita gente fingia não ver. Mas, afinal, o que nutre a forma discriminatória com a qual os homens enxergam o sexo feminino hoje?

A objetificação das mulheres é algo que está na base da sociedade patriarcal disseminada pela cultura do ocidente. Foi com muito suor e sangue derramado que nós conseguimos conquistar direitos e espaços de participação em países latino-americanos, como o nosso. Mas essas conquistas, além de insuficientes, estão sempre sob ameaça, como vemos na perseguição a lideranças políticas e acadêmicas femininas e nos índices de violência doméstica e sexual.

E eis que chegam as Caravanas da Coca com seu Papai Noel típico, um senhor branco idoso, recebido como um rei pela população. Para acompanhar essa figura endeusada, temos uma demonstração da sociodiversidade brasileira: duendes pardos e negros e jovens mulheres conhecidas como Noeletes. São ajudantes do bom velhinho, cercando-o de reverência, como devemos fazer com quem é famoso, poderoso, respeitado.

As diferenças da cor da pele e da idade não são aleatórias e revelam bem a lógica do capital. A seleção dessas pessoas já deixa tudo explícito: quem quiser ser Papai Noel tem que ter mais de 55 anos e quem quiser ser Noelete tem que ter até 35 anos. Fica a questão: o que faz uma Noelete para ter que ser assim jovem? Ela deve somente orbitar em torno do senhor da cena, ajudar nas tarefas que ele tiver que fazer e embelezar o show com sua juventude e sua solicitude. Mulher serve para quê, né?

Além de reforçar estereótipos, discriminações e preconceitos, o que essas jogadas publicitárias como as Caravanas de Natal fazem, ao posicionar desse modo seus e suas personagens nas apresentações ao público, é criar uma contradição no imaginário das pessoas. Ali, reluzindo nos caminhões, estão moças esbeltas, cheias de energia, transmitindo a ideia de corpos e mentes saudáveis. É o oposto do padrão que o consumo diário de Coca-Cola gera, como já vimos anteriormente.

Quanto mais cresce a distância entre a fantasia exibida no show e a realidade vivida no chão, mais a população sofrerá com a ansiedade de desejar algo que nunca vai conseguir. É esse desejo insaciável que impulsiona o consumo material de produtos criados e anunciados pelas corporações, como os refrigerantes famosos, bem como o consumo imaterial dos símbolos e valores vinculados a esses produtos e à sua publicidade, como é o caso do próprio espetáculo.

Caravanas saborosas

Na minha mente, não há nada mais destoante do que uma fila de caminhões revestidos com uma decoração típica de uma região que é absolutamente gelada, ao ponto de nevar, chegando em uma cidade em que as temperaturas estão ao redor dos 30 graus. Nada nesse desfile me parece dialogar com as tradições culturais e a natureza das regiões visitadas. Uma lástima, já que as Caravanas da Coca percorrem regiões tão singulares do nosso país e de outros países.

No entanto, existem outras possibilidades de participar de uma caravana. Um exemplo que podemos dar é de uma iniciativa do Instituto Pólis que leva habitantes paulistanos para conhecer as hortas urbanas e periurbanas do município. Chamadas de Caravanas Agroecológicas de São Paulo, essas vivências se baseiam em uma metodologia desenvolvida pelos movimentos agroecológicos, na qual quem planta é protagonista e pode partilhar seus saberes. Elas conectam as pessoas que moram na urbe com os espaços verdes e produtivos da cidade e com ideias bem diferentes das que circulam na mídia corporativa.

Ao chegar nas hortas agroecológicas que fazem parte do circuito de uma dessas jornadas, podemos experimentar um pouco do universo rural sem sair de uma metrópole ultra-urbanizada como Sampa. Podemos descobrir alimentos que não conhecemos. Podemos até colher algo fresquinho, direto da terra, livre de venenos, transgênicos e fertilizantes químicos à base de petróleo. Podemos sentir sabores que variam bastante de acordo com o local e o momento, em oposição aos sabores padronizados das bebidas produzidas pelas mega empresas alimentícias.

No título deste artigo, convidamos as pessoas a se descolarem da Coca-Cola do Natal. Parece uma missão impossível para você? Que tal, ao invés de levar sua família para o desfile de caminhões invernais (para não dizer infernais), vocês visitarem uma roça urbana, um assentamento da Reforma Agrária, uma aldeia indígena? Vocês podem trazer para casa frutos e hortaliças da época, para fazer uma ceia natalina em sintonia com nosso clima, nossa natureza e nossas raízes culturais.

Na mesa, no lugar das horríveis garrafas PET de Coca, poderiam ter garrafas de vidro com água aromatizada com pedacinhos de ervas frescas ou de frutas nativas, como abacaxi e maracujá. Elas ficam coloridas, enfeitam o ambiente, saciam a sede de verdade e nos lembram que não precisamos gastar nosso dinheiro suado com produtos artificiais que fazem tão mal aos nossos corpos, às nossas emoções, à nossa sociedade, à nossa cultura alimentar e à nossa Pachamama, tão pouco reverenciada em um mundo em que homens brancos poderosos agem como reis ou deuses, decidindo o que nos cabe como civilização.

E é mesmo necessário caprichar nas ceias deste período, tendo fartura de alimentos agroecológicos, para dar a energia necessária às lutas que teremos seguramente que travar nos próximos meses. Batalhas que irão se intensificar com a chegada das eleições majoritárias, o aumento dos fenômenos climáticos extremos e a disputa pelo imaginário popular em tempos de redes digitais e inteligências artificiais.

Lutas que serão ainda mais acirradas porque – pela primeira vez – um brasileiro assumirá a presidência executiva mundial da empresa, colocando nosso país no olho do furacão. E isso ocorre justamente no ano em que a Coca-Cola completará 140 anos do primeiro copo consumido de sua bebida-símbolo. Para coroar a ironia dessa história, ele foi servido em 1886 justamente no balcão de uma farmácia… o tipo de estabelecimento que muita gente que hoje consome a bebida é obrigada a frequentar.

Que a força dos povos ancestrais, que resistem secularmente ao modo de vida imposto pelo imperialismo, nos inspire nas confraternizações da virada de ano, atraindo as bênçãos da Mãe Terra, para agirmos com equilíbrio e determinação em 2026!

Ah, e não podemos deixar passar a chance de dizer em alto e bom som: Fora Coca-Cola!

Sobre a autora

Susana Prizendt, arquiteta urbanista, é judárabe (descendente de judeus romenos pelo lado paterno e de árabes libaneses por parte materna). É integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, do Movimento Urbano de Agroecologia (MUDA) e do Coletivo Banquetaço, além de ser colaboradora da Xepativismo.