Borba Gato (1649-)
As estátuas só são passado quando estão tranquilas nas praças, partilhando a recíproca indiferença entre nós e elas.
As estátuas só são passado quando estão tranquilas nas praças, partilhando a recíproca indiferença entre nós e elas. Nesses momentos, que por vezes duram séculos, são mais intencionalmente visitadas por pombas do que por seres humanos. Quando, no entanto, se tornam objecto de contestação, as estátuas saltam do passado e passam a ser parte do nosso presente. Doutro modo, como poderíamos dialogar com elas e elas conosco? Claro que há estátuas que nunca são contestadas, quer porque pertencem a um passado demasiado remoto para saltar para o presente, quer porque pertencem ao presente eterno da arte. Estas estátuas só não estão a salvo de extremistas tresloucados, caso dos Budas de Bamiyan, do século V, destruídas pelos talibãs do Afeganistão em 2001.
As estátuas que hoje saltam do passado são contestadas por representarem contas que ainda não foram saldadas, destruições e injustiças que não foram e deviam ter sido reparadas. Quem contesta as estátuas não lhes pede contas a elas nem exige reparações delas. As contas têm de ser feitas e as reparações têm de ser dadas por quem herdou e detém o poder injusto que as estátuas representam. Sempre que o poder que as fez erigir foi justa ou injustamente derrotado, as estátuas foram retiradas prontamente sem nenhuma comoção e até com aplauso (estátuas de Estaline no período pós-estalinista ou as estátuas de Saddam Hussein depois da invasão do Iraque). Se é tão forte o movimento atual de contestação às estátuas, iniciado na África do Sul e continuado na Inglaterra, nos EUA e mais recentemente na Colômbia e agora no Brasil, isso deve-se à continuidade no presente do poder que no passado originou as destruições e as injustiças de que as estátuas são involuntárias testemunhas. E se o poder continua, continuam as destruições e as injustiças. A contestação é contra estas.
E que poder é esse? Em termos simples, é o capitalismo selvagem e o colonialismo eterno. O colonialismo não é passado. O que consideramos passado é uma ilusão de óptica, uma cegueira em relação ao presente. O que passou (e não totalmente) foi uma forma específica de colonialismo, o colonialismo histórico, a ocupação territorial de um dado território por uma potência estrangeira. Mas o colonialismo continuou até hoje sob outras formas: o racismo, a expulsão dos indígenas dos seus territórios, o saque dos recursos naturais, o novo genocídio pandémico, o massacre de jovens negros das periferias, as prisões racializadas. Se nada disto fosse parte do nosso presente, as estátuas estariam sossegadas e entregues às pombas. Suspeito que as estátuas não terão sossego enquanto estas formas de poder existirem com a virulência que têm hoje. Falar de violência contra os corpos mortos das estátuas em nome da política de não violência é trivializar a violência diária cometida contra os corpos vivos das vítimas de racismo e de sexismo. Contra tal cegueira, manifesto a minha solidariedade para com Paulo Galo, uma das mais promissoras lideranças populares do Brasil.
A partir do momento em que se tomar consciência da imensa injustiça histórica e da sua continuidade no presente, as estátuas só terão sossego se forem transformadas em instrumentos de pedagogia de justiça social ou se forem reapropriadas por quem foi vítima da injustiça histórica que elas testemunham. No primeiro caso, são duas as possíveis medidas. Ou recolher ordeiramente todas as estátuas que testemunhem formas particularmente graves de injustiça histórica e construir um museu para elas onde poderão ser contextualizadas e convertidas em lições de história. Ou contextualizá-las nos espaços onde se encontrem por obras de arte contemporânea que construam diálogos políticos e interculturais com elas, fazendo disso uma criativa pedagogia de libertação. De preferência, os artistas devem ser oriundos dos povos ou grupos sociais que foram vítimas da violência que as estátuas glorificam
No segundo tipo de medidas quem resgata as estátuas são os próprios povos ou os grupos sociais ofendidos pela história que elas contam. Pode ser feito de múltiplas formas. Refiro uma testemunhada pela minha experiência de sociólogo. Há na Ilha de Moçambique, no norte do país, uma estátua do poeta português do século XVI, Luís de Camões (c.1524-1580), colocada pelos colonialistas portugueses. Com as mudanças turbulentas da independência em 1975, a estátua foi retirada e guardada nos armazéns da capitania. Entretanto, deixou de chover na Ilha anos a fio. Os velhos sábios da Ilha reuniram-se, fizeram os seus rituais e chegaram à conclusão de que a falta de chuva talvez se devesse à retirada intempestiva da estátua. Pediram que a estátua fosse reposta e o Camões lá está, olhando para imensidão do Oceano Índico e, ao que parece, trazendo a chuva que enche a cisterna da fortaleza. A estátua de Camões e a sua história foram assim reapropriadas pelos moçambicanos.
As estátuas contestadas e resgatadas têm duas vidas: a que lhe deram os vencedores da história e a que agora lhe dão os vencidos dessa mesma história. À medida que as duas histórias forem saldando as suas contas uma nova e mais justa história nascerá.