Atravessados pela Intolerância: Bullying contra estudantes LGBTQIA+ e os desafios da permanência escolar
Ambiente escolar segue hostil para estudantes LGBTQIA+: exclusão, violência e evasão marcam a luta por permanência.
Nas últimas décadas, a escola tem sido alçada ao status de território de direitos. No entanto, para uma parcela significativa da juventude LGBTQIA+, esse território permanece inacessível, marcado por exclusão, violência e silenciamento. A Pesquisa Nacional sobre o Bullying no Ambiente Educacional Brasileiro (2024), coordenada pela Aliança Nacional LGBTI+ em parceria com o Instituto Unibanco, rompe com o véu da neutralidade institucional e oferece um retrato realista das experiências de insegurança e discriminação que estudantes LGBTQIA+ enfrentam em suas escolas.
Os dados são gritantes: 86% dos estudantes LGBTQIA+ afirmam se sentir inseguros nas instituições de ensino, índice que salta para 93% entre pessoas trans. Para quase metade deles, esse sentimento de insegurança existe desde sempre. A escola, que deveria ser espaço seguro de construção de vínculos, se revela ambiente hostil. Racialização, a orientação sexual e a expressão de gênero são os principais gatilhos de agressões verbais, sofridas por nove em cada dez estudantes LGBTQIA+. A humilhação é uma constante, e não raro evolui para violência física, vivida por 34% da amostra, número ainda maior entre pessoas trans e negras. Esses dados não apenas confirmam o caráter estruturante da LGBTIfobia nas relações escolares, como revelam o despreparo das instituições para enfrentá-la.
A presença de docentes entre os agressores, apontada por 35% dos respondentes, exige uma denúncia mais enfática. A escola não é apenas cúmplice da violência: ela a produz. Quando o educador, por ação ou omissão, reforça estigmas e naturaliza exclusões, o pacto educativo é rompido. A formação docente ainda carece de abordagens interseccionais, que articulem sexualidade, gênero, raça e classe não como temas periféricos, mas como fundamentos da experiência escolar. É nesse ponto que a crítica ao discurso da neutralidade se torna essencial: fingir imparcialidade diante da violência é tomar partido.
A consequência mais imediata desse ambiente tóxico é a evasão escolar. Quase metade dos estudantes LGBTQIA+ faltaram à escola no mês anterior à pesquisa por se sentirem inseguros, e 60% das pessoas trans já consideraram abandonar os estudos. O dado não é estatística fria, ele revela o fracasso coletivo em garantir o direito à educação. O abandono não é escolha individual, mas resposta legítima à ausência de segurança, acolhimento e pertencimento. Trata-se de uma pedagogia do exílio.
A invisibilização institucional da temática LGBTQIA+ corrobora esse processo. A pesquisa revela que 68% dos estudantes nunca participaram de aulas sobre diversidade sexual e de gênero, e 81% nunca vivenciaram rodas de conversa ou palestras sobre o tema. Isso mesmo em um contexto em que mais da metade afirma querer falar sobre essas questões. A demanda por diálogo é clara. A ausência de espaços seguros, por outro lado, é política: não se trata apenas de falta de informação, mas de uma escolha deliberada por silenciar.
Se a escola ainda insiste em não ver seus estudantes LGBTQIA+, o Estado precisa intervir. Não basta reconhecer o problema, é necessário enfrentá-lo com políticas públicas consistentes. A criação de protocolos de acolhimento, a institucionalização de núcleos de diversidade em todas as unidades escolares e a presença permanente de profissionais de saúde mental devem ser prioridade. A pesquisa mostra que apenas 39% das escolas contam com psicólogos ou assistentes sociais. Entre os estudantes que procuraram ajuda nas instituições, 69% relataram que nenhuma medida foi tomada. E, onde houve ação, 86% consideraram-na ineficaz. Essa inoperância institucional contribui para o adoecimento emocional generalizado: 94% dos estudantes LGBTQIA+ disseram ter se sentido deprimidos no mês anterior à pesquisa.
Frente a esse cenário, é urgente reconhecer que o bullying contra estudantes LGBTQIA+ não é um problema de disciplina, mas uma violação de direitos humanos e exige respostas estruturais. Formações obrigatórias sobre diversidade sexual e de gênero para educadores, inclusão efetiva desses temas nos currículos, canais de denúncia com garantia de sigilo e escuta ativa, parcerias com organizações da sociedade civil e campanhas de sensibilização são medidas indispensáveis.
O artigo 206 da Constituição Federal estabelece o princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. Mas para estudantes LGBTQIA+, essa permanência depende, ainda hoje, de um esforço sobre-humano. A escola que queremos, democrática, diversa, plural, não se constrói apenas com boas intenções. Exige coragem política para romper com as práticas de exclusão, e compromisso pedagógico para garantir que todes aprendam, mas sobretudo, que todes sobrevivam.