As últimas estações de São Paulo
A Estação Pedro II era um esqueleto do que fora um dia. Nas paredes, entre circuitos expostos, cartazes desbotados ainda proclamavam: “O futuro respira aqui!”
A primeira chuva caiu às cinco e vinte da tarde, gotas negras sibilando contra o asfalto corroído. O céu vertia toxinas em espirais esverdeadas, enquanto fungos bioluminescentes nos prédios abandonados criavam constelações artificiais. Emanuelle verificou o medidor quântico em seu pulso: toxicidade em vermelho crítico, três vezes acima do limite de sobrevivência.
A Estação Pedro II era um esqueleto do que fora um dia. Nas paredes, entre circuitos expostos, cartazes desbotados ainda proclamavam: “O futuro respira aqui!” O subsolo era um labirinto de tecnologia moribunda. Os osciladores de plasma falhavam em sequência, suas luzes pulsando em padrões erráticos, enquanto cada estalido ecoava pelos túneis como ossos quebrando. A Zona Protegida de São Paulo – ZPSP – agora era apenas mais um acrônimo tóxico na história de falsas salvações.
“Dois minutos”, anunciou sua própria voz pelo implante, gravada quando ainda acreditava no sistema. O som ricocheteava nas paredes cobertas por líquen fluorescente, cada eco uma memória dos tempos em que progresso significava esperança.
O trem chegou vomitando vapor sulfúrico. As luzes internas piscavam como batimentos cardíacos irregulares, lançando sombras que dançavam nas poças de água contaminada. Emanuelle ajustou a máscara, mas o cheiro de ozônio e metal oxidado ainda penetrava, queimando suas memórias.
Era tudo uma coreografia calculada de controle. O sistema de metrô, os últimos espasmos da antiga infraestrutura, não existia para levar ninguém a lugar algum, mas para manter as pessoas em movimento, como peças de uma engrenagem que nunca parava. O destino era irrelevante – o importante era a ilusão de que ainda havia um.
São Paulo não era mais dividida por classes, mas por alturas.
A elite já havia abandonado a superfície há muito tempo, fugindo para os subterrâneos quando as ruas se tornaram inabitáveis. Agora, flutuavam acima de tudo, em uma miragem feita de vidro orgânico – um composto vivo criado em laboratório, que se regenerava como pele sintética, filtrando toxinas e radiação com a mesma eficiência com que filtrava culpa.
As cúpulas eram uma obra-prima de hipocrisia tecnológica: o vidro era projetado para ser unidirecional. De baixo, sua transparência era cruel – deixava ver cada detalhe do paraíso artificial, cada jardim algorítmico, cada rua que bebia luz e a regurgitava em saúde líquida. De cima, no entanto, um filtro seletivo transformava tudo abaixo em uma mancha indefinida, uma abstração conveniente que podia ser ignorada durante coquetéis ao pôr do sol.
Mas havia uma falha no sistema – ou talvez fosse proposital, um lembrete perverso do poder que tinham. Bastava desativar o filtro, apertar um botão discreto, e a realidade abaixo se revelava em toda sua crueza. Das bordas mais altas das cúpulas, eles observavam. Não com culpa ou curiosidade – mas com uma fome insaciável por degradação. Desativavam os filtros como quem liga uma tela proibida, e o espetáculo da miséria se revelava em alta definição.
Nas ruínas abaixo, sobreviventes se contorciam em torres podres. Erguiam cartazes patéticos, ofertas desesperadas rabiscadas em papelão: órgãos, filhos, almas – como se ainda tivessem algo de valor para negociar. Os habitantes das cúpulas assistiam com o fascínio clínico de cientistas observando ratos em um labirinto envenenado.
Instalaram binóculos de precisão militar nas janelas, hologramas que capturavam cada detalhe da decomposição. Fizeram da tragédia um esporte: apostavam no próximo a cair, no próximo a quebrar. Uma mãe ofereceu a filha por um filtro de ar – eles brindaram com champagne ao absurdo.
O horror virou vício. Quanto mais profunda a degradação, mais intensa a satisfação. Era uma droga nova: destilada de desespero alheio, servida em taças de cristal. E quando a dose diária terminava, voltavam para seus jardins artificiais, já antecipando o próximo episódio de decadência humana – sua novela particular de fim de mundo.
À noite, as cúpulas reluziam, seus sistemas de purificação trabalhando em ciclos silenciosos. As luzes nunca apagavam – era importante que todos pudessem ver, tanto os de cima quanto os de baixo, que o futuro tinha escolhido seus herdeiros. E eles, protegidos por suas bolhas regenerativas, podiam escolher quando e se queriam testemunhar o preço de seu conforto.
Emanuelle tentou suspirar, mas o ar rasgava seus pulmões como vidro quebrado. No banco oposto, um homem segurava uma maleta gasta com a devoção de quem já perdeu tudo. Seus olhos traziam o brilho inconfundível dos sobreviventes do subterrâneo – aqueles que viviam das sobras deixadas pela elite, sustentados por uma frágil mistura de desespero e determinação.
“Comércio ou refúgio?” perguntou, voz rouca pelo ar tóxico.
“Sobrevivência.” A palavra pairou entre eles como névoa.
Abaixo da máscara remendada, ele esboçou um sorriso amarelado. “Tenho filtros de água. Tecnologia das cúpulas, modificada. Cinco créditos de oxigênio.”
Ela soltou uma risada seca. “A única coisa que tenho de valor aqui é meu próximo suspiro. E, com sorte, o próximo depois dele.”
“Amanhã pode valer mais que ouro.” Baixou a voz. “Há rumores sobre os osciladores. Sobre a verdadeira natureza das falhas.”
A Estação República emergiu das sombras como uma catedral industrial profanada, onde vapor e penumbra se misturavam ao som distante de sirenes. Para Emanuelle, não era apenas uma parada: era a última chance de encontrar Salomão. Conhecido por traficar oxigênio comprimido, desta vez ele prometia mais – falava de brechas nos campos de força das cúpulas, falhas invisíveis que poderiam ser usadas para romper o sistema. Essas brechas, deixadas pela própria soberba da elite, eram a peça-chave de um plano maior, mas dependiam dela. Emanuelle trazia os códigos, fragmentos roubados de um sistema que poderia ser desarmado e virado contra os próprios criadores.
Quando o trem parou, ela desceu com passos rápidos, o olhar atento enquanto desviava dos drones de vigilância que pairavam como abutres, caçando movimentos suspeitos. Salomão deveria estar perto dos antigos elevadores – um ponto cego nas máquinas, mas perigoso demais para hesitações.
Mas o que encontrou não foi Salomão. Era um corpo.
Um homem esquálido, de quase dois metros, estirado no chão ao lado de um cilindro vazio. Seu rosto azulado, congelado em uma expressão de desespero final, denunciava a morte limpa e calculada do envenenamento por plasma. Ao lado, um bilhete rabiscado às pressas tremulava no ar pesado: “Eles sabem. Estamos todos condenados.”
Perto do corpo, um terminal ainda ativo projetava a verdade que Salomão prometera. Arquivos detalhavam como as falhas nas cúpulas não eram erros, mas armadilhas planejadas para transformar a sobrevivência em dependência. O ar puro nunca fora um direito – era uma mercadoria meticulosamente controlada. Mas havia mais: o terminal exibia um mapa holográfico das cúpulas e de seus sistemas. Túneis ocultos, horários de acesso, pontos vulneráveis. Tudo o que era necessário para finalmente entrar nas cúpulas, para romper o isolamento da elite.
Aquilo não era apenas uma prova – era um plano. O bilhete era um aviso, mas o mapa era uma chave. Emanuelle sentiu o peso daquilo. A promessa de Salomão não era mais um sonho distante; era uma possibilidade real, mas agora dependia dela.
Ela recuou, o coração disparando.
O mundo ao redor parecia comprimir-se numa única batida de estática, como se o sistema inteiro estivesse à beira de um colapso final. E talvez estivesse. Um som ecoou – passos. Não de alguém vivo, mas das máquinas, os cães metálicos do governo, com sensores calibrados para caçar qualquer um que se afastasse da linha.
Emanuelle correu, ofegante, com o ar pesado rasgando seus pulmões e as sirenes uivando como uma sentença. A máscara remendada já não filtrava o suficiente, e o horizonte, tingido de verdes e cobres venenosos, parecia se dissolver em sua visão turva. Mas ela sabia para onde estava indo.
Entre as estações, nos vãos esquecidos, havia os que ainda resistiam – um rumor que Salomão repetira tantas vezes que parecia um sussurro em sua mente agora. “Eles existem. E quando o momento chegar, vão nos encontrar.” Era uma promessa que ela não podia ver, mas em que precisava acreditar.
As máquinas a perseguiam, os passos dos cães metálicos ecoando nos túneis, mas ela não parou. O terminal piscava em sua memória: o mapa, os códigos, as falhas – tudo estava ali, seguro em seu bolso, esperando por mãos que pudessem usá-lo. Ela não viveria para ver o resultado, mas não importava. O que carregava era maior do que ela.
No fim do túnel, a luz se dissipava em um abismo de escuridão. Um vão entre as estações, um buraco no sistema que nem as máquinas se arriscavam a explorar. Emanuelle parou por um instante, o coração disparado. O ar era cada vez mais ralo, queimando sua garganta como vidro triturado, mas ela sabia o que precisava fazer.
Ela se atirou no vazio.
A queda foi rápida, mas parecia eterna. O ar tóxico a envolvia, as sombras se fechavam ao seu redor, mas no fundo, além do escuro…
…ela imaginou vozes.
Movimentos
Mãos estendidas.
Eles estavam ali.
Não sabia quando a encontrariam, mas sabia que o fariam.
Salomão estava certo: a resistência existia, escondida nas profundezas, esperando por algo ou alguém que lhes trouxesse uma chance.
Fechou os olhos enquanto o impacto chegava.
No bolso, os dados roubados pesavam como um grito sufocado, mas carregavam uma promessa. Talvez o mundo ainda pudesse mudar – e mesmo que ela não estivesse lá para ver, seu último salto era mais do que uma fuga.
Era uma entrega.
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Nota da autora: Conto desenvolvido em colaboração com IA, usando dados de tendências reais e projeções futuristas. Qualquer semelhança metafórica com a realidade não é mera coincidência – é sintoma.