Artista é profissão: o palco é o lugar onde somos todos iguais
É necessário nós, artistas de universidade, e apesar de morar geograficamente na periferia, eu não nasci no meio do morro, nos colocarmos em nosso lugar de militantes, mas de ouvintes.
Por Isabela Alves
A disputa da narrativa sempre pertenceu ao campo da arte. Agora São Paulo adormece com as narrativas corrompidas e marginalizadas. Nessa segunda-feira (16) artistas se organizaram de maneira independente, para tomar a Paulista e reivindicar o fim da ADPF 293, que coloca a profissão artista apenas como manifestação do ser, tirando o direito ao DRT, às leis trabalhistas e tudo que vem com uma profissão regulamentada legalmente. Essa mudança no entendimento de arte afeta toda uma classe de pessoas, que passam sua vida dedicadas a expressão do ser humano.
O ato contou com a presença de estudantes de arte plásticas, cênicas, musicais, literárias e outros cursos, que pintaram as mãos de vermelho, representando o sangue derramado pelo estado, e escreveram palavras de ordem no rosto, como: “arte é revolução”.
É possível ter dois temas de discussão sobre a ADPF 293 e a mobilização: quem consegue se mobilizar para chegar até a Paulista e entender o golpe artístico que estamos sofrendo? E por que justo agora é possível existir essa modificação na lei?
A primeira questão permeia um recorte de raça, classe e acesso. O recorte racial era predominantemente branco, contrastando com algumas manifestações que tivemos em São Paulo, como a de Marielle Franco, em que foi organizada por homens e mulher negras.
Esse recorte não pode ser desligado com classe, colocando em cheque com as presenças de universidades públicas, que tem como estudantes alunos de classe média e alta, que mesmo se alinhando ao pensamento de esquerda, acabam por inibir a presença de negros negras moradores de periferia.
A arte, apesar de estar presente em todos nós, tem como dominante justamente essa elite do pensamento, que ingressando na academia consegue uma espécie de ascensão artística, de uma desenvolvimento da sensibilidade erudita, deixando marginalizada as favelas e a expressão do morro.
É nítido que a periferia produz arte. O Hip-Hop como um todo, a poesia, a gastronomia, a maneira de se vestir das pessoas de favela, hoje são fortes temas de pesquisa, de mídia e de interesse do mercado. Entretanto, por que em um ato que diz respeito à profissão artista, não estava lotado de gente marginal? De morador de rua? O que faz com que apenas uma classe artística estivesse em maioria?
Talvez uma das respostas seja o lugar. A Av. Paulista é perto para Zona Oeste, Butantã, Centro, mas é longe para Zona Norte, Sul e Leste, os fundões. É caro chegar, porque o ônibus custa 4 reais ida e 4 reais volta. Como diz Leonardo Andrade , da periferia de Americanópolis, “zona sul, bairro totalmente desconhecido, cê fala cê tem que dar bairros próximos. (…) Já é difícil viver de arte e a gente provar isso através de um papel, infelizmente, E hoje eu to aqui justamente por resistência, por você ser da favela e você ter que lutar por isso, por seu sonho”.
É incômodo. Não quero tirar a importância de ser na Paulista, lugar de grande trânsito, mobilidade, que chama atenção. Porém, às vezes é necessário ir até as periferias e fazer delas um lugar de atenção e mídia. Ir e ouvir o que os artistas que não tem a perspectiva de obter carteira assinada, DRT e outros documentos, tem a dizer sobre quase ser morto por fazer rima.
É necessário nós, artistas de universidade, que, apesar de morar geograficamente na periferia, não nasceu no meio do morro, nos colocarmos no lugar de ouvintes, tem gente que precisa dizer tanto quanto nós.
“Sou MC, sou ator, sou roteirista, sou um artista independente tentando viver também (…) Moro na quebrada do Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo (…) Eu to aqui no ato contra a ADPF 293, não só por conta do DRT, que tão querendo tirar, mas para mostrar para esse bando de playboy, que tá aqui dizendo que ta lutando pelo artistas, que também existe uma classe de artistas que é uma galera de periferia tá ligado?”, disse Felipe Gonzales, conhecido como Gonzales.
Isso nos leva para a próxima questão: por que a arte é alvo de desmonte? Pois bem, a arte sempre foi. Primeiro, faz-se preciso entender que arte não é somente uma ferramenta de emancipação, ela é a própria emancipação.
Produzir arte é de enorme perigo para um sistema que aprisiona, mata e tortura injustamente.
Nosso país vem passando por uma onda de destruição desde 1500 d.c, quando os colonizadores atracaram em nossa costa e escravizaram, estupraram e assassinaram nossos índios. Eles sim, verdadeiros artistas, que através de seus costumes, conseguiram passar um enorme legado de cultura e resistência.
Depois, veio a escravidão dos negros, que também através da arte deixaram suas marcas nas igrejas de Ouro Preto, centro de extração de ouro e de escravos, na cultura popular, na religião, na comida e na base da língua. Em todos os lugares conseguimos achar vestígios desses dois povos, que foram dizimados pelos homens brancos.
Esse sentimento de violência latente e patente não deixou de existir nos dias de hoje. Nosso país continua com a mesma disputa de narrativa, com os mesmo no poder: homens brancos que tiraram uma mulher da presidência, matam mulheres negras representativas, prendem homens negros injustamente, prendem um ex-chefe de Estado injustamente, torturaram jornalistas e manipulam a população. Homens que acreditam que através do racismo, machismo e homofobia será possível limpar a nação.
Muitos de nós, artistas, somos as sujeiras do sistema. Por essa lógica higienista, que tira moradias de pessoas, que não concede terras, que não aprova o aborto nem as drogas, é possível colocar a arte em um campo ainda mais menosprezado, em uma relação de apenas manifestação do ser.
Arte não é apenas manifestação do ser, a arte em si, feita principalmente por minorias, é o ser. É aqui que se respira em meio a balas perdidas.
A sobrevivência dos povos torturados pelos colonizadores, das mulheres, das minorias políticas, se mantém pela arte e com a arte. Por isso que querem tirá-la da perspectiva da profissão, para nos matar aos poucos.
Para não perder as esperanças, palavras de Eliná Coronado, mestre dos palcos há 40 anos, companheira de Augusto Boal na criação do teatro do oprimido: “Porque que eu estou aqui hoje? Porque isso é trabalho que exigiu estudo de nós (…) Existe tempo de preparo para poder entregar o trabalho bem feito como qualquer outra profissão (..) Tem gente que acha que não tem o que fazer, não sei que propósitos tem, talvez interesses econômicos, escusos, que quer nos tirar esse direito, estou aqui por isso, ao lado da garota para que vocês tenham ânimo, força, para que vocês não desistam nunca (…)”