Amarelo como o futuro que nós construímos pra nós mesmos
Racismo, homofobia e invisibilidade são empurradas para trás quando Emicida, Pabllo e Majur se encontram para cantar AmarElo. Esse ano eu não morro.
Um negro, um gay e uma pessoa não binária entram em um bar. Mais do que uma piada de mal gosto da década passada, essa descrição caberia numa noite comum da nova juventude brasileira. Isso fala não só sobre a mistura de tribos, para usar outra expressão ultrapassada, mas também a visibilidade destas vivências. E é sobre isso que “AmarElo”, a nova música de Emicida, com participação de Pabllo Vittar e Majur, canta.
O clipe começa com um áudio, um desabafo de um homem negro. Deixando de lado de quem/pra quem é a voz para ignorar a nossa proximidade ou carinho com o personagem, vemos aí a primeira quebra de paradigma. Um homem negro falando sobre seu estado mental, sobre como se sente. A masculinidade como foi construída até então tira dos homens o direito de falar sobre seus sentimentos, mas principalmente mutila os homens negros dessa possibilidade. Em algum momento o homem branco pode ser romântico, sensível, nerd, um príncipe até, mas ao homem negro sobra quase um arquétipo único – o de forte como um gorila, agressivo, violentador de mulheres (como vimos em “Olhos que Condenam”, por exemplo).
A voz do homem começa de forma informal falando sobre não conseguir dormir e, junto das imagens vai escalando para uma verdade nua, crua e vergonhosa – O índice de suicídio entre jovens e adolescentes negros cresceu 12% desde 2016 e é 45% maior do que entre brancos.
As palavras ao telefone são explícitas – algum episódio extremo aconteceu, existe medicação envolvida, há uma pressão para fingir que está tudo bem, tudo isso acompanhado de imagens triviais da cidade, junto a sangue escorrendo pelo ralo lá nos dois minutos e quarenta e nove segundos. É um quadro clássico de uma pessoa depressiva, traumatizada. É um quadro clássico que você daria a um jovem branco, não a um adolescente negro. Trazer isso a tona é extremamente corajoso, mas mais que isso, é necessário.
A mensagem ganha um tom mais efetivo ao ser trazido pela voz de Emicida, um porta voz de um projeto “bem sucedido” dos pretos brasileiros. Qualquer um que prestasse atenção saberia que as idéias articuladas em “Hoje Cedo” eram uma pintura agonizante de sua realidade, mas foi precisa outra letra sobre isso. Aproveito para chamar atenção para o personagem feminino na música de 2013, a mulher que ficou para trás. Quem sabe agora nos ouvem.
O segundo personagem mais conhecido é cantado por Phabullo Rodrigues da Silva, conhecido como Pabllo Vittar. Outro símbolo de sucesso que incomoda, Pabllo tem 24 anos, é nordestino original de São Luiz (MA) e cresce como uma bicha afeminada, uma ofensa direta a tal masculinidade. É a gay que até um tempo todos tinham nojo, indiscutivelmente fora do armário, forçando a sociedade e conviver com um corpo fora do padrão esperado do feminino/masculino.
Um homem gay, drag queen – e não uma mulher trans como muitas vezes foi percebido – que hoje em dia cruza pelas paradas LGBT pelo mundo cantando música brasileira. Um corpo atravessado pelo ódio e preconceito, que é cinco vezes mais propenso a tentar suicídio do que os heterossexuais.
Então, nos deparamos com Majur. Unindo sua voz com Belchior, um timbre comumente entendido como feminino nos conta que tem sangrado demais, chorado pra cachorro e que ano passado morreu, mas esse ano não. Essa letra faz muito mais sentido quando entendemos que Majur é uma pessoa não binária, uma presença que desafia a ideia normativa de gênero representada por homem/masculino e mulher/feminino.
Dentre as bandeiras LGBT, é uma das mais invisibilizadas o que acaba sendo uma pancada na autopercepção e autoestima dos que não se conformam com a forma compulsória de ver os gêneros. É assim mais uma forma de execução silenciosa de nossos jovens. Ter uma artista emergente como Majur cantando neste corpo acena para uma nova era na representatividade.
Apesar de todos estes fatos correlacionados ao sofrimento destas pessoas, AmarElo não deixa espaço para dúvidas – essa música não é um muro das lamentações, não é sobre nossas derrotas. “Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes. Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes. É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóis sumir”, os versos de Pabllo, apesar de sonoramente leves são a sentença que nós escolhemos: mesmo com as cicatrizes, estamos entrando em um bar, não num beco escuro.
Se comecei ouvindo esta música com olhos marejados, pensando em quantas vezes meu irmão comentou sobre seus episódios depressivos, ao meio levantei e gritei o refrão, meti dança desengonçada, comemorei meu ótimo momento, celebrei minha comunidade, minha família, meus amores e metas alcançadas. Amarelo é a cor da campanha de conscientização sobre a importância da prevenção do suicídio. Mas também é a cor do sol de um novo futuro que nós estamos criando à rebelia do algoz que quer nos ver sumir.
É uma música histórica para nosso momento histórico.
Tudo nela me empurrou para lembrar que esses episódios não nos resumem. Somos um preto e seu diploma, somos pessoas com deficiência e suas superações diárias, somos bailarinas clássicas se erguendo em meio a escombros, somos uma estilista empregando outros jovens negros, somos dançarinos, somos um negro, um gay e uma pessoa não binária.
Posso até ter chorado demais, mas este ano eu não morro.