‘Agromilícia’ é sinônimo de um país que naturaliza a guerra contra os povos originários
O indígena deixa esposa e dois filhos. Ele vivia na comunidade a pouco mais de um ano e trabalhava na roça para sustentar a família
por Rafaela Collins
O ataque que assassinou Vicente Fernandes Vilhalva Kaiowá e Guarani, de 36 anos, na madrugada de 16 de novembro, não é um episódio isolado. É parte de uma engrenagem histórica de violência legitimada pela omissão do Estado brasileiro. Em Pyelito Kue, na Terra Indígena Iguatemipeguá I, em Iguatemi (MS), cerca de 20 homens armados abriram fogo contra famílias que apenas tentavam retomar parte do território tradicional do qual foram expulsas. A execução de Vicente, com um tiro na cabeça, confirma o que os Guarani e Kaiowá repetem há décadas: vivem sob um Estado de exceção permanente, onde a terra, a vida e o futuro são negociados ao preço da bala.
A cada ataque, revela-se novamente o mesmo enredo, pistoleiros oriundos de fazendas vizinhas, suspeita de participação ou conivência de forças policiais, destruição de casas, feridos, desta vez, inclusive adolescentes e a pressa em apagar vestígios. É significativo que três dos feridos tenham sido atingidos por balas de borracha, armamento restrito às forças de segurança pública. Há anos, denúncias semelhantes são ignoradas ou arrastadas no sistema de justiça, enquanto decisões de demarcação seguem paralisadas. A Terra Indígena Iguatemipeguá I, delimitada desde 2013, permanece sem homologação. A retomada de Pyelito Kue, ocupação indígena dentro de uma área já reconhecida como pertencente aos Guarani e Kaiowá, deveria ser tratada como exercício legítimo de um direito. Mas o que se vê é o oposto: a criminalização da vítima e o empoderamento do agressor armado.
É preciso registrar que Vicente não era “um invasor”, como setores ruralistas tentaram repetir. Ele era pai, agricultor, trabalhador da roça, sustentáculo de sua família e vivia há pouco mais de um ano na comunidade, que hoje enterra mais um dos seus mortos em nome de uma espera que já dura 40 anos. A cada retomada, repetem-se os ataques. A cada ataque, repetem-se as notas de repúdio. Mas o que nunca se repete é o cumprimento da lei: demarcar terras indígenas, proteger vidas, garantir segurança. Enquanto isso, as ‘agromilícias’ seguem atuando com alto poder de fogo, infraestrutura, logística e, muitas vezes, cumplicidade. A violência no Cone Sul de Mato Grosso do Sul não é descontrole, e sim projeto político de expulsão.
Em plena COP30, quando o Brasil tenta se apresentar ao mundo como defensor da floresta e da transição ecológica, a morte de Vicente expõe a contradição central da política ambiental brasileira, onde não existe preservação climática sem garantia dos territórios indígenas, e não existe garantia territorial enquanto pistoleiros circulam impunemente. Os Guarani Kaiowá são o povo mais violentado do país. Segundo os dados do Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado em maio deste ano, em decorrência de conflitos em terras indígenas, a etnia Guarani-Kaiowá foi a mais afetada pelas internações hospitalares por agressões, totalizando 574 casos. Eles vivem comprimidos em pequenas faixas de terra enquanto latifúndios avançam sobre áreas já reconhecidas pelo próprio Estado. A cada retomada, a cada aldeia reconstruída, afirmam que sua resistência é também uma forma de manter viva a mata, os rios e a biodiversidade. Mas resistir não deveria ser sentença de morte.
A Força Nacional foi enviada, a Polícia Federal investiga, a Funai confirma os ataques. Mas essas respostas emergenciais, que chegam sempre depois da tragédia, não substituem o que realmente precisa ser feito: demarcar imediatamente Iguatemipeguá I e garantir a presença permanente do Estado para impedir novos massacres. A violência que matou Vicente não nasceu na madrugada de domingo, ela é alimentada diariamente pela demora na demarcação, pela ausência de fiscalização, pela negligência histórica do poder público e pela normalização da milícia rural.Não se trata apenas de segurança pública. Trata-se de democracia. Quando o Brasil permite que territórios indígenas sejam governados por armas, perde-se o próprio sentido de país, inclusive de discutir questões climáticas, pois já é sabido por todos que justiça climática passa pela preservação dos territórios dos originários, principais guardiões da floresta em pé.
Em Belém (PA), foi realizada a ‘Vigília Somos Todos Guarani Kaiowá’, um ato da Apib em solidariedade ao povo Guarani Kaiowá após assassinato de mais um defensor da floresta. A esperança é que o mundo atine para o fato de que não há justiça climática sem justiça para os povos indígenas.