Por Susana Prizendt 

Sabe aquela estória do moleque travesso que solta silenciosamente um pum na sala e, na maior cara de pau, pergunta quem foi que peidou? Pois é, a situação é muito semelhante ao que acontece no Brasil em relação à tal carestia dos alimentos. 

É que os setores diretamente responsáveis pelas dificuldades que as brasileiras e os brasileiros encontram – ao tentar comprar a comida capaz de nutrir suas famílias – costumam ser os que mais reclamam, fingindo que nada têm a ver com o problema… Como se as incontáveis benesses que recebem do poder público para sustentar seus negócios indigestos nunca fossem suficientes. Como se seus recordes de lucros não fossem o resultado de práticas que priorizam a produção e a exportação de commodities, ao invés de garantir o abastecimento alimentar no país.

Na verdade, se considerarmos a lógica “capetalista” que rege suas mentes, eles têm toda razão em esbravejar e tacar o pau no governo. Quanto mais fragilizado este estiver, mais as bancadas parlamentares de rapina – que representam os interesses de fazendeiros, produtores de venenos, fabricantes de ultraprocessados, grandes redes de distribuição e comercialização de alimentos – terão poder de fogo para barganhar com o executivo, arrancando medidas que beneficiam ainda mais os donos da grana e que estrepam ainda mais o povão.

E o círculo vicioso se aprofunda: quanto mais impopular o governo frente às massas, mais vulnerável à chantagem da banca; quanto mais submisso a essa chantagem, desmontando o que resta dos mecanismos públicos de controle da desigualdade, mais impopular frente ao povo – que sente no bolso, nos corpos e nas almas como é ter cada vez menos direitos assegurados e mais contas impagáveis para pagar.

Afinal, o endividamento das famílias brasileiras não se deve apenas a eventuais compras de celulares e televisões, mas ao que se gasta com a sobrevivência – e a compra de comida não fica fora desse imbróglio. Não é à toa que o sistema bancário, grande beneficiário dessas dívidas, também é apoiador de primeira ordem do Ogronegócio exportador. De um lado, há recorde de lucro com o envio de soja para engordar porcos na China e, do outro lado, há recorde de lucro dos bancos com os juros cobrados pelos empréstimos a quem não tem dinheiro para garantir a alimentação básica em casa. Vale lembrar que a taxa SELIC acaba de subir ao maior nível desde 2016, chegando 14,25% ao ano, para a felicidade da turma do financismo.

Romper essa engrenagem cruel não é nenhum mistério. Aqui vai a receita essencial: taxar as exportações de commodities agropecuárias e democratizar o acesso à terra, incentivando e fortalecendo o cultivo agroecológico por parte da agricultura familiar. Mas, se as medidas citadas aqui são velhas conhecidas, também se sabe, desde que o mundo é mundo, que elas mexem em um vespeiro que, quando atiçado, já botou muito governo pra correr ao redor do planeta, sobretudo no sul global. Golpes, guerras e sanções fazem parte das ferroadas que essas vespas (peço mil perdões aos insetos pela comparação) que detêm os poderes locais, nacionais e internacionais costumam distribuir a quem se atrever a cutucar seus privilégios.

E é assim, se equilibrando entre ações que não melindrem os poderosos e que impeçam que a população morra de fome, que muitos dos governos considerados progressistas vêm se arrastando. Aqui, em nossa “pátria amada idolatrada, salve, salve”, não é diferente – e mesmo a habilidade do presidente Lula em dar nó em fumaça e conciliar o inconciliável não está sendo suficiente frente a uma crise estrutural do sistema, crise que parece prestes a engolir o que ainda resta de futuro da civilização humana. A fervura climática, que atinge com muito mais intensidade quem menos contribui para ela, está aí para mostrar o tamanho da encrenca.

Na esfera econômica, a concentração de riquezas vem se sobrepondo às políticas de transferência de renda, no plano nacional e planetário. No Brasil, como revela o relatório “A distância que nos une”, 6 bilionários detém o equivalente ao que os 100 milhões mais pobres da nossa população possuem. Você já se perguntou quem são essas pessoas? Se você pensa que elas são dos setores das Big Tech, Big Money e Big Food, acertou redondamente!.

Descobrir como construíram suas fortunas pode ajudar a entender porque o que você ganha como salário (caso você ainda tenha um, dado que a precarização do trabalho é uma constante em nossos tempos) nunca chega até o final do mês e os preços nos mercados parecem correr sempre na frente dos valores que entram em sua conta bancária. Falando dos alimentos, de 2012 para 2024, houve um aumento de nada menos do que 162% no país! E a tendência é essa porcentagem seguir crescendo.

A burguesia fede 

Voltando a questão do pum na sala, você consegue imaginar o cheiro do ambiente em que estejam presentes os representantes das seguintes organizações: Associação Brasileira de Proteína Animal (APBA), Associação Brasileira das Indústrias Exportadores de Carnes (Abiec), Associação Brasileira de Supermercados (Abras), Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) e União Brasileira do Biodiesel (Ubrabio)?

Foi essa turma gente boa que esteve reunida com o governo federal antes do anúncio do pacote lançado, no dia 6 de março, para combater a alta de preços da comida. Por mais perfumados que esses homens poderosos estivessem, jamais seria possível disfarçar o fedor que exala de seus corpos institucionais, mergulhados até o último fio de cabelo em um sistema que faz propaganda de modernidade e sustentabilidade, mas que carrega no colo o que há de mais reacionário e insustentável na sociedade.

É um fedor que não é natural, não vem do suor, da urina, das fezes… Ele vem do conteúdo tóxico, material e imaterial, que as empresas que eles representam despejam sobre gentes e territórios. Sim, elas envenenam nosso solo, nosso ar, nossa água, nossos organismos. Mas, também, nossos pensamentos, sentimentos e relações sociais. Seja através de agrotóxicos e aditivos alimentares ou de fake news e greenwashing, a intoxicação que causam está totalmente entrelaçada com o impasse civilizacional em que nos encontramos, no qual se conjugam tanta tecnologia e tanta precariedade; do qual não conseguimos sair, mesmo enxergando que o precipício se aproxima; o qual nos retira o ar.

Não podemos esquecer que a agropecuária e as mudanças no uso da terra são responsáveis por 74% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil e que estas últimas são decorrentes do avanço das monoculturas e da criação de animais sobre áreas de vegetação nativa e territórios de povos tradicionais. Por meio do desmatamento; de incêndios criminosos ou gerados pelo colapso do clima; da pulverização de venenos; de arrotos e puns dos rebanhos de gado – entre outros fatores -, a expansão contínua da engrenagem agroindustrial predadora é o grande obstáculo ao cumprimento de metas ambientais no país. 

Pois foi em meio à atmosfera irrespirável, decorrente dessa engrenagem, que se deu a reunião acima citada. Quem fez companhia a essa corja foram o vice-presidente Geraldo Alckmin, os ministros Rui Costa (Casa Civil), Carlos Fávaro (Ogronegócio) e Paulo Teixeira (Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar). Representantes dos movimentos sociais? Nenhum pra contar a história. E foi depois desse encontro mal-cheiroso, como se precisasse pedir licença aos detentores da bufunfa, que o pacote de medidas anti carestia foi anunciado. O ponto de destaque das ações previstas, algo que ainda precisa ser aprovado pela Câmara de Comércio Exterior (Camex), foi zerar os impostos de importação de alguns tipos de alimentos, como café, carne, azeite, açúcar e milho.

Sim, eu disse impostos de “importação”! Eu não disse impostos de “exportação”. Percebeu? De fato, isentar de impostos produtos importados, como os mencionados acima, não faz muita diferença em um país que já os produz em grande quantidade, se não se ataca o centro do problema: a atual existência de isenção fiscal para que os produtos primários que são gerados aqui sejam exportados, rendendo em dólar aos que os despacham para o exterior. Tornar a exportação menos vantajosa seria a maneira efetiva de aumentar o fornecimento de alimentos para o mercado interno, ou seja, para o povão.

Mas, mesmo que as medidas anunciadas não cheguem nem perto de cutucar o vespeiro Ogro, o governo foi bombardeado pelas vespas de plantão – que, sempre com livre trânsito nos veículos de mídia (que sustentam com suas propagandas falaciosas), saíram dando declarações a portas abertas e fechadas, deixando nítido seu descontentamento com o pacote. Haja hipocrisia… e haja paciência da nossa parte para não mandar esses caras tomarem uma dose cavalar de semancol ou se afundarem nos tanques de agrotóxicos que tanto os enriquecem.

Com esse cenário venenoso – em que o próprio ministro Carlos Ogro Fávaro já ameaçou deixar o governo, caso este se metesse a questionar as isenções fiscais para exportação -, sobrou para nós, movimentos sociais que defendem a Agroecologia, encontrar um modo de pressionar o governo a adotar medidas mais realistas no enfrentamento da crise estrutural que nos atinge, sem desestabilizá-lo ao ponto de abrir espaço para o golpismo voltar a reinar. As cobranças por parte do MST se intensificaram, já que o programa de Reforma Agrária não entrava na agenda e vinha se arrastando por mais de dois anos de gestão.

Inspiração profunda

A pressão, em um momento em que as críticas por parte de outros setores que elegeram Lula também subiram de tom, parece ter gerado resultados. Junto do ministro Paulo Teixeira, do presidente do INCRA, de prefeitos, deputados e lideranças locais e regionais, o presidente assinou, no dia 7 deste mês, um conjunto de 7 decretos de interesse social, e fez a entrega de mais de 12 mil lotes a famílias até então acampadas em 138 áreas cujos proprietários devem à União. Também serão liberados, ainda em 2025, recursos de cerca de R$ 1,6 bilhão em crédito para habitação, apoio inicial e incentivo a mulheres e jovens de assentamentos. É o Programa Terra da Gente, que já tem quase um ano de vida, começando a sair do papel.

O lugar do anúncio, Quilombo Campo Grande, em Minas Gerais, emana uma forte carga simbólica, pois se trata de um território em que a comunidade campesina lutou por 27 anos, até conquistar seu reconhecimento oficial, o que se deu inteiramente somente agora, na data do lançamento do pacote de medidas. Ela enfrentou 11 processos de reintegração de posse, alguns em plena pandemia, o que revela o envolvimento do poder judiciário com a perpetuação de nossa estrutura agrária excludente. Mas resistiu e, hoje, produz mais de 100 tipos de alimentos agroecológicos, como o próprio café, um dos vilões da inflação atual. Diversidade que é uma constante nas áreas de cultivo mantidas pelas famílias agricultoras, verdadeiras responsáveis pelo que a população põe no prato.

Vale conhecer a história do Quilombo: ele nasceu a partir da falência de uma usina de cana, que deu calote nos trabalhadores e trabalhadoras, bem como no próprio Estado – prática que, fazemos questão de dizer, segue atualíssima por parte da elite econômica. Também nos remete à resistência dos povos negros, indígenas e campesinos ao modelo escravagista do latifúndio – cuja estrutura deu origem a atual constituição agrária do país, que tem uma das maiores concentrações fundiárias do mundo. Ao longo de séculos, eles se organizaram para enfrentar a violência, criar comunidades independentes e aprofundar conexões com a natureza local.

É desse legado que os homens e as mulheres do Campo Grande se nutriram e é dele que hoje todos e todas nós, que buscamos uma transformação profunda da sociedade, podemos nos nutrir, para não baixarmos a cabeça. Como Sílvio Neto, liderança local, disse com voz forte, durante o ato de assinatura dos decretos, para a plateia e para a comitiva governamental: “que essa resistência inspire todos e todas… quando o governo vacilar, presidente Lula, que essa resistência inspire nosso governo. Aqui, não se criou covardes. Aqui, se criou lutadores e lutadoras do povo.”

E prosseguiu: “nós sabemos que o decreto não é só um reconhecimento da nossa luta, nós temos a certeza de que, a partir desse decreto, nós vamos ampliar nossa produção, vamos seguir nos alimentando e alimentando as cidades, vamos combater qualquer especulação que tem sido feita com o preço dos alimentos… porque é a partir da Reforma Agrária que vamos baratear esses alimentos, é a partir da Reforma Agrária que nós vamos combater a fome neste país.”

Sem deixar margem para quem ainda insiste em fingir que o modelo agrícola convencional não tem nada a ver com a miséria e a destruição ambiental, disse ainda: “a nossa Reforma Agrária é Agroecológica, a nossa Reforma Agrária não copia o Agronegócio. Nós não precisamos envenenar o nosso povo e a terra. Nós damos conta de produzir em quantidade, mas com qualidade, os nossos alimentos.” E, “para que o governo se inspire em assentar as 80 mil famílias do MST que estão acampadas por todo o país e as 150 mil famílias de outros movimentos”, ele arremata seu discurso nos instigando a encher o peito de ar e soltar o grito de luta que foi entoado pelo povo do Campo Grande durante esses 27 anos: “Quilombo Campo Grande/ Não pára de Lutar/Para construir Reforma Agrária Popular!”.

Aromas da luta pela Vida

O encontro, realizado em espaço aberto, com transmissão para todo o país, contou com organizações sociais bem diferentes das presentes na reunião a portas fechadas em que o PIB estava representado e o ar estava tóxico. Celebrando e reforçando o compromisso com a jornada pela justiça, estiveram no Quilombo Campo Grande, além de lideranças do MST, representantes da CONTAG, do MPA, da Associação Brasileira de Reforma Agrária, do Movimento de Mulheres Camponesas, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, do Movimento Camponês Popular, entre muitas outras que formam o Campo Unitário de lutas.

A data escolhida para a assinatura dos decretos também trouxe abertura para um tema fundamental na construção de nossa democracia: a presença feminina no campo e na luta. Em plena véspera do Dia Internacional da Mulher, conhecido como 8M, o encontro contou com companheiras que também deram o recado. Uma delas lembrou que foi a mobilização feita pela Marcha das Margaridas, em 2023, que cutucou o governo federal para a retomada das políticas voltadas para a Reforma Agrária. E todas as que se pronunciaram deixaram claro que sempre foram as mulheres que arregaçaram as mangas para semear a terra, cozinhar a comida, cuidar das crianças, velhos e doentes e garantir a dura sobrevivência diária das comunidades, em meio a uma realidade carregada de machismo, de injustiças, de exploração.

O mês da luta pelos direitos das mulheres traz cheiros bem diferentes dos que intoxicam os ambientes onde os lobistas se reúnem. São os Aromas de Março soprando o perfume de quem trabalha todos os dias nos cuidados familiares e comunitários necessários à reprodução da vida, o perfume daquelas cujo suor sagrado rega as esperanças de que podemos derrotar a miséria e exigir dignidade em todas as instâncias individuais e coletivas. O cheiro dos matos e das matas, dos caldos que curam e dos unguentos que aliviam, do sangue derramado todos os meses. Cheiro que este mês se espalha aos quatro ventos levando mensagens de força, de coragem e de regeneração.

Diferentemente dos representantes da elite Ogra – que têm na hipocrisia, na desfaçatez, na chantagem e na manipulação as suas principais armas para manter o país prisioneiro de um sistema injusto e destrutivo -, os movimentos agroecológicos dos campos, das cidades, das águas e das florestas, abençoados pelas energias femininas, encontram na ética, na solidariedade e na retidão de conduta as suas bases para construir a resistência, criar um modo mais equilibrado de habitar o planeta e conviver com todos os seres que fazem com que ele seja este globo fervilhante de vida, em meio a imensidão do cosmos.

Junto a esses lutadores e, sobretudo, a essas lutadoras populares, nós podemos encher o peito para entoar com força nossos cantos motivadores. Junto a essa gente de fibra, nossa inspiração pode ser realmente profunda, livre dos gases tóxicos exalados pelos representantes da elite cretina que tenta, a todo custo, devorar a possibilidade de existência de um futuro minimamente viável para a humanidade.

Que as palavras entoadas pelo povo do Quilombo Campo Grande e pelas mulheres, em suas marchas por direitos verdadeiros, entrem em nossos ouvidos, fertilizem nossas mentes, cultivem nossas almas. Que os Aromas de Março – exalados por tantas guerreiras incansáveis, que sustentam bravamente a produção e a reprodução nos territórios de todas as regiões do país -, renovem os ares dentro e fora de nossos pulmões. Que possamos, envolvidos e envolvidas nesse ambiente livre de venenos e inundado de amor e de coragem, (nos) inspirar. Hoje e sempre.

Susana Prizendt é arquiteta urbanista, integra a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e o Movimento Urbano de Agroecologia (MUDA)