Agricultura familiar e agroecologia para enfrentar a fome e as mudanças climáticas
O modelo dominante de agricultura no país ainda é baseado em monoculturas e com uso intensivo de agrotóxicos.
Em 16 de outubro é celebrado o Dia Mundial da Alimentação, data instituída pela FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) que nos provoca a refletir sobre os desafios ligados à fome, ao acesso a alimentos e às desigualdades socioeconômicas que atravessam os sistemas alimentares.
Na última semana, o IBGE divulgou novos dados do módulo Segurança Alimentar da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, que mostram uma leve melhora no cenário brasileiro: a proporção de domicílios com algum grau de insegurança alimentar caiu de 27,6% para 24,2% entre 2023 e 2024. Isso representa cerca de 2,2 milhões de lares a menos vivendo nessa condição.
Apesar do avanço, os números ainda preocupam: 18,9 milhões de domicílios no país convivem com algum nível de insegurança alimentar — o equivalente a quase um em cada quatro lares brasileiros. Ou seja, mesmo com os sinais de melhora apontados pelo IBGE e com a saída do Brasil do Mapa da Fome da ONU, anunciada em meados de 2025, os desafios estruturais que comprometem o direito à alimentação adequada permanecem severos.
Em outras palavras, se não mudarmos a forma como o sistema alimentar está estruturado no Brasil, dificilmente conseguiremos garantir refeições saudáveis e adequadas para toda a população. Isso exige transformações profundas no sistema agroalimentar, desde o plantio e a colheita até o beneficiamento e a distribuição dos alimentos.
O modelo dominante de agricultura no país ainda é baseado em latifúndios voltados à exportação de produtos como soja e milho transgênicos, cultivados em monoculturas e com uso intensivo de agrotóxicos. Segundo o Observatório do Clima, esse sistema é responsável por mais de 73% das emissões brutas de gases de efeito estufa (GEE) no Brasil.
Quando a sociedade é chamada a refletir sobre segurança alimentar e nutricional, torna-se cada vez mais evidente a necessidade de discutir as causas e os impactos das mudanças climáticas nesse contexto.
Agroecologia e justiça climática
Para compreender melhor como as iniciativas de agroecologia vêm enfrentando as mudanças climáticas, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) realizou, entre abril e junho deste ano, o mapeamento inédito “Agroecologia, Território e Justiça Climática”. A análise dos resultados será apresentada nesta semana, durante o 13º Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), que acontece até 18 de outubro, em Juazeiro (BA).
O estudo identificou 503 experiências agroecológicas, mobilizando mais de 20 mil pessoas em 307 municípios. Entre os dados que apontam como as mudanças climáticas podem agravar a insegurança alimentar e nutricional, dois se destacam: 56,3% das experiências relataram diminuição da produção, e 48,1% afirmaram ter registrado perdas. Esses números revelam não apenas a redução da quantidade de alimentos disponíveis, mas também de alimentos saudáveis, produzidos de forma justa e adaptados às condições socioecológicas dos territórios.
Por outro lado, as boas notícias também vêm dos territórios brasileiros, onde a agricultura familiar e os povos e comunidades tradicionais têm inovado e criado soluções efetivas para transformar um sistema alimentar amplamente controlado por grandes corporações ligadas ao agronegócio.
A pesquisa mostrou que 35% das experiências mapeadas envolvem ações de produção, beneficiamento, acesso a alimentos e mercados, refletindo o papel central da agroecologia na promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional e na ampliação do acesso ao alimento saudável.
Outros 31,4% das experiências estão voltados à conservação da agrobiodiversidade e à convivência com os territórios, incluindo salvaguarda de sementes e raças animais, manejo ecológico do solo, práticas de regeneração ambiental e Sistemas Agroflorestais (SAFs).
As iniciativas que têm promovido adaptação, mitigação e resiliência frente às mudanças climáticas são protagonizadas por ao menos 28 grupos sociais, entre agricultoras e agricultores familiares, camponeses, educadores, estudantes, agricultores urbanos, jovens, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, entre outros.
Soberania alimentar e economia solidária
O conjunto de dados revela como a agricultura de base familiar pode ser protagonista de um processo amplo e necessário de democratização dos sistemas alimentares, capaz de fornecer alimentos saudáveis, garantir participação coletiva na gestão dos bens comuns e ampliar, a partir dos territórios, as soluções locais para o enfrentamento da crise climática.
Essas práticas estão diretamente relacionadas à soberania alimentar, que defende a autonomia das comunidades sobre o que produzem e consomem — em oposição ao controle de grandes corporações que visam apenas o lucro. Ao produzir de forma sustentável e respeitar a diversidade cultural e ambiental de cada local, a agricultura familiar reforça o entendimento do alimento como patrimônio.
Além da diversidade de alimentos produzidos, o destino da produção também é variado: além da venda em feiras e mercados institucionais, parte significativa é destinada ao autoconsumo, à doação ou à troca. No estudo da ANA, 40% das experiências destacaram temas ligados à construção social de mercados, economia solidária e outras formas alternativas de economia.
A relação mais próxima entre quem produz e quem consome contribui para que o alimento seja compreendido não apenas como um produto de consumo, mas como um elemento essencial da cultura alimentar.
O papel do Estado e da sociedade civil
Diante das mudanças climáticas e do quadro persistente de insegurança alimentar em milhões de lares brasileiros, é imperativo fortalecer a agricultura de base familiar como estratégia central para garantir o acesso a alimentos saudáveis e nutritivos, especialmente para populações em situação de vulnerabilidade.
Esse fortalecimento exige monitoramento constante da sociedade civil e compromisso ativo do Estado brasileiro, por meio de políticas públicas eficazes que assegurem acesso à terra, crédito, assistência técnica, infraestrutura e mercados justos e solidários para comercialização e distribuição dos alimentos.
Apoiar a agricultura praticada por famílias camponesas e comunidades tradicionais em todo o país é garantir o direito humano à alimentação adequada, promover economias locais, impulsionar caminhos para a superação da fome e enfrentar a crise climática.