A urgência da representatividade não se limita ao que se vê nas telas
Representar a população comporta, portanto, um sentido literal, quase mecânico, de assegurar que a opinião dos “ausentes” tenha vez nos espaços políticos.
Na noite do Oscar 2018, Frances McDormand, ganhadora do prêmio de melhor atriz, convocou todas as mulheres indicadas a se levantarem (nesta edição foram apenas onze em todas as categorias) e convidou os presentes a ouvirem essas mulheres. Ela encerrou com duas palavras: inclusion rider.
O termo refere-se a um conceito apresentado em um TED talk em 2016, pela pesquisadora de mídia Satcy Smith, que é professora associada da Escola de Comunicação e Jornalismo da Universidade do Sul da Califórnia (USC) e fundadora e diretora da Annenberg Inclusion Initiative. Ela verificou que as produções americanas não refletem a demografia da vida real.
Inclusion rider é uma ação afirmativa contratual. A artista ou o artista pode determinar um nível de diversidade tanto no elenco quanto na equipe, contemplando gênero, etnia, pessoas com deficiência e outras minorias.
É uma medida em que a celebridade abre espaços para grupos que não possuem representatividade na indústria do cinema sejam representados por quem defende, tem origem ou identidade com eles/elas.
Vivemos tempos em que a causa da representação transborda – ou mesmo subverte – os espaços políticos. Mais do que representação, importa a representatividade. Não há quem melhor defenda as causas das mulheres do que nós mesmas, o mesmo estendendo-se para as questões relativas à etnia, identidade e orientação de gênero e sexo, etc.
Atualmente, esta nova realidade mostra-se com maior nitidez justamente no mundo do entretenimento, em particular em recentes obras de cinema e séries audiovisuais. Que é o hodierno fenômeno do filme “Pantera Negra” senão isso? Como ignorar o fascínio que jovens negros e negras têm demonstrado ao, pela primeira vez, reconhecer um herói que compartilha, mais que a cor da pele, os desafios que a realidade impõe a eles? O mesmo aplicando-se à série “Conto de Aia”, ao reproduzir, num hipotético futuro distópico, todos os vetos e dificuldades impostos a nós, mulheres, pela sociedade patriarcal e machista em que vivemos, especialmente quanto a questão da maternidade.
A urgência da representatividade dessas causas não se limita ao que se vê nas telas de cinema e televisão.
A presença de mulheres, negros e negras, LGBTs, importa também por detrás das câmeras, dirigindo, roteirizando, produzindo as realizações. Que dizer do fato de, entre os dez candidatos ao prêmio de melhor filme indicados pelo Oscar, apenas um ter sido dirigido por mulheres?
Nesse mesmo sentido, é tocante o esforço empreendido pelas mulheres através do movimento “MeToo”, de denúncia dos casos de assédio no mundo do entretenimento. Também vale destaque as denúncias dos atores e atrizes negros sobre a ausência desses entre os nominados nas premiações para atuação.
Essas ações, individuais e coletivas, entre celebridades e no ramo do entretenimento estão gerando o debate na sociedade. Há quem repudie ou considere desnecessárias as manifestações políticas públicas de artistas, ou mesmo esportistas, como se esses espaços nunca tivessem sido orientados politicamente.
Aqui no Brasil, o jornalista Tiago Leifert da TV Globo recorreu a um artigo na revista masculina GQ para protestar contra a utilização do esporte como espaço para protestos políticos. Esporte, para o apresentador do Big Brother Brasil, é um espaço que deveria ser dedicado exclusivamente ao entretenimento, ignorando, claramente, as diversas manifestações políticas literalmente em campo, transmitidas ao vivo para o mundo, como a atitude de Daniel Alves na Espanha, quando comeu a banana que foi jogada por um torcedor racista.
A aversão à política, diante do contexto recente nacional, poderia ser considerada um fenômeno eminentemente brasileiro. Um erro crasso. Mundo afora, tal sentimento de aversão também é notado, com maior intensidade em determinados países, menor em outros.
Tão relevante que é, motiva uma das mais pronunciadas áreas de estudo da Ciência Política, a que se dedica a compreender aquilo que define como “crise da representação política”.
Desde já, vale lembrar que o contexto original dessa linha de análise tem como foco o caso europeu. Ela investiga o porquê de, desde meados da década de 1970, os partidos políticos passarem a reunir um número cada vez mais limitado de apoiadores e filiados. Os motivos elencados são vários, compreendendo mudanças sociais, tecnológicas, culturais. Ao cabo, o que se encontra é a incompatibilidade entre um novo padrão de cidadania frente a um modelo obsoleto de organização política. Obsoleto seja por resistência de seus atores, apegados a estruturas e lógicas do passado, seja por pura incapacidade de identificar as mudanças então em curso.
A compreensão desse fenômeno – e de suas mais recentes implicações – exige o entendimento dos conceitos de representação e de representação política. Bem nos ensina Hanna Pitkin, a representação deve ser vista como o “tornar presente o ausente”, sentido posteriormente apropriado pela política. A representação política ganha então formato institucional, compreendendo fazer com que aqueles que não podem participar diretamente da decisão política (a população) torne-se presente por meio de seus eleitos, assim constituídos (democraticamente) seus representantes.
Representar a população comporta, portanto, um sentido literal, quase mecânico, de assegurar que a opinião dos “ausentes” tenha vez nos espaços políticos. Por outro lado, comporta também um sentido simbólico.
De um representante não se espera apenas o cumprimento de seu dever, de reproduzir as posições para qual foi eleito. Antes, exige-se dele que se identifique com a causa que defende ou, mais do que isso, seja ele próprio um integrante das causas pela qual atua.
Não se nega aqui que a indústria do entretenimento é, antes de tudo, uma indústria. O que implica que tudo o que produz, por mais relevante que seja, é mercadoria e destina-se, primeiro, ao lucro. Por outro lado, a busca por representatividade neste espaço não surgiu aleatoriamente, mas tem a ver com a luta política concreta travada historicamente pelos grupos e movimentos organizados. Mas, não faz sentido ignorar a dimensão do impacto que tais tematizações produzirão no longo prazo. É estimulante ver negros e negras tendo cada vez mais orgulho de sua etnia. É gratificante ver as questões relacionadas à condição das mulheres deixarem de ser invisíveis para a sociedade, em particular entre homens. É uma alegria perceber que um transgênero foi a cara do carnaval no Brasil.
Diante da ascensão conservadora no mundo, movimentos organizados estão sendo silenciados.
Ter celebridades defendendo suas pautas, ainda que dentro de um setor específico, contribui para que a luta por mais direitos e representação volte ao ambiente da representação política.
O desejo por mais espaço e por real transposição das questões referentes a cada uma dessas causas não é restrito à indústria do entretenimento e motivará os embates eleitorais.