“A questão da fome é real se houver um impasse e não se encontrar uma saída”
Uma série de políticas desmanteladas ou congeladas em determinadas regiões, que trazem um agravamento em relação às desigualdades regionais. Portanto, não foi algo por acaso. Houve intenção nesse desmonte.
Há décadas nas trincheiras de luta no combate à fome, o pesquisador Francisco Menezes, ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), alerta para um possível crescimento da extrema pobreza no Brasil por causa da pandemia do coronavírus. Embora o governo não disponibilize dados precisos sobre a situação da fome no país, ele avalia que alguns indicadores são preocupantes no atual cenário.
Contemporâneo do sociólogo Betinho, que foi um ícone na idealização de projetos para combater a fome, Menezes participa há anos do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). É vice-presidente do conselho do movimento Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, que é referência na distribuição de alimentos às populações mais vulneráveis. Presta consultoria também para ONG ActionAid, que trabalha por justiça social, igualdade de gênero e pelo fim da pobreza.
Segundo os dados do Ação da Cidadania, desde o início da pandemia foram arrecadados cerca de R$ 25 milhões de reais para distribuição de alimentos, o equivalente a 5 mil toneladas que beneficiam quase 2 milhões de brasileiros e brasileiras. É o índice mais alto dos últimos anos, chegando a ser cinco vezes maior que o Natal Sem Fome de 2019, por exemplo. Eles arrecadam recursos, que são revertidos em cestas básicas distribuídas em todas as periferias do país.
Na entrevista, Menezes fala sobre as indefinições dos próximos meses durante a pandemia, a importância da agricultura familiar e políticas públicas para combater a falta de produção e distribuição de alimentos, bem como das desigualdades regionais, raciais e de gênero no Brasil.
É possível mensurar quantas pessoas sofrem com a fome no país?
Ninguém sabe, se alguém falar está, de alguma maneira, inventando. A última pesquisa foi realizada em 2018 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) junto à POF (Pesquisa de Orçamento Familiar). Antes, era feita de cinco em cinco anos com a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio). Eles aplicavam um questionário e publicavam esses resultados, mas a última divulgada foi em 2013. Houve essa decisão, em 2018, um deputado entrou com uma requisição de acesso à informação e o IBGE informou que ainda não processou os resultados. É muito grave isso. O Bolsonaro falou em público que quem afirma que existe fome no Brasil está mentindo. Se é mentira, por que não publicaram os resultados de 2018 até hoje?
Em uma palestra sua na Fiocruz, você afirmou que os anos 2015 e 2016 representaram 10 anos de retrocesso em relação à extrema pobreza. Por quê?
A PNAD mede a situação de renda da população, anualmente, e o IBGE adotou linhas de pobreza e extrema pobreza. Segundo os cálculos divulgados à época, o Brasil teria retrocedido aos dados de extrema pobreza de 12 anos atrás e, em três anos, tinha voltado à situação da pobreza de oito anos atrás. Tinha melhorado bastante a redução da extrema pobreza e da desigualdade, até 2014. Depois, houve uma inflexão e começou a crescer aceleradamente. Não dispondo dos dados da pesquisa sobre a fome, a gente faz uma correlação da extrema pobreza com a fome. Mas, tem que ter um cuidado porque nem toda pessoa extremamente pobre passa fome, assim como nem toda pessoa com fome é extremamente pobre. Na época em que se divulgava, estes números eram próximos.
Embora não tenhamos estes números de forma precisa, muitas instituições, como a FAO e o Banco Mundial, têm alertado sobre a volta do Brasil ao mapa da fome. Quais as perspectivas?
No final de 2019, a gente tinha 14 milhões de pessoas em extrema pobreza. Então, provavelmente, tem um número próximo a este vivendo uma situação de fome. Quando entra o ano e a pandemia chega ao Brasil, logo há registros do próprio Ação da Cidadania. Aqui no Rio de Janeiro, tive contato com o pessoal da zona oeste descrevendo um contingente grande de ambulantes e diaristas que, de uma hora para outra, ficou sem renda. Esse pessoal não tinha uma poupança para recorrer. Então, assistimos várias manifestações desta situação em todo o Brasil.
Houve um movimento rápido na sociedade exigindo um repasse de transferência de renda frente à pandemia. Os partidos da oposição conseguiram que uma maioria apoiasse um auxílio emergencial que ia além do Bolsa Família. A proposta do Bolsonaro e do Guedes [ministro da economia] para o auxílio emergencial foi de R$ 200,00, o Congresso demandou R$ 500,00 e o Bolsonaro, em um de seus arroubos, disse em entrevista que daria R$ 600,00. Foi aprovada a proposta no Congresso, que agora ele diz que é sua e está capitalizando. A informação que é repassada é como uma “bondade” dada pelo governo, não como um direito, mas a história verdadeira é outra. Isso segurou as pessoas de mergulharem numa situação de pobreza muito extrema e de fome mas, muitos que precisavam não conseguiram o auxílio emergencial, devido à péssima implementação como foi feita.
Estavam previstas três parcelas, sendo que já estamos caminhando para o quinto mês, não?
Prorrogou por mais dois meses, termina em agosto. Se não se chegar a uma solução que estenda esse apoio, o país vai mergulhar num caos completo. O IBGE fez uma pesquisa em função da Covid-19 e mostrou que cerca de 40% da força de trabalho está sem renda. O índice de desemprego não está tão elevado, porque não se considera os que não procuram trabalho por causa da pandemia. Mas esses índices explodiriam sem o auxílio emergencial. Agora, o governo está tentando empurrar essa proposta de Renda Brasil para substituir o Bolsa Família, mas está com dificuldades. O gasto com auxílio emergencial mensal é em torno de R$ 58 bilhões por mês. Então, multiplicado por cinco, dá algo em torno de R$ 280 bi. A oposição está defendendo que se estenda até dezembro, mas a estratégia do governo é tentar empurrar esse programa extinguindo outros de transferência de renda, abono salarial, seguro defeso da pesca, etc. Ou fazer passar a CPMF às pressas, mas está encontrando resistência no Congresso. Ele tem o mês de agosto para resolver isso, pode fazer por medida provisória, salvo o abono salarial que precisa de emenda constitucional. Então, ele está nesse quebra-cabeça e a gente oferecendo resistência. Defendemos, sim, uma renda básica, mas como uma ampliação do Bolsa Família, em termos de gente e valor, junto a uma reforma tributária, para gerar recursos suficientes para bancar esta transferência de renda, sem sacrifício da proteção social que se construiu até agora.
Então, estamos num momento bastante indefinido nos próximos meses e a questão da fome é real, se houver um impasse e não se encontrar uma saída. Essa possiblidade é muito potencializada pela questão das contas públicas pois, para dar continuidade a um programa desse tamanho, será preciso dar uma mexida muito forte nelas. Defendemos soluções estruturais, sobretudo no caminho dos tributos, cobrando dívidas bilionárias que algumas empresas têm e nunca são cobradas, inclusive as do agronegócio. Se nada for feito, haverá o crescimento da fome, já sentida na ponta e evitada, em parte, por organizações da sociedade, com a distribuição de cestas de alimentos, pois muita gente não acessou o auxílio emergencial.
Outro elemento neste contexto é o PL 735 chamado de emergencial para a agricultura familiar, que passou na Câmara e no Senado e aguarda a sanção presidencial.
A agricultura familiar está sendo muito penalizada nesta pandemia. A alimentação escolar significa para ela um mercado muito significativo, pelo mínimo de fornecimento de até 30% a que tem direito. Com a necessidade do isolamento social e o fechamento das escolas, parte da agricultura familiar ficou sem esse mercado e com grandes dificuldades de escoar sua produção. Esse PL defende, sobretudo, um reforço grande do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que é outro programa fundamental para a agricultura familiar. Ele vinha sendo esvaziado e, nessa situação de emergência, mostrou toda sua importância. Você tem um lado da pobreza no campo que resulta disso daí, por conta do desmantelamento das estruturas que vinham sendo construídas. Portanto, falar da fome hoje incorpora diversos elementos do campo à cidade. O que está acontecendo com essas pessoas que ficaram de fora do auxílio emergencial? Porque a forma de se cadastrar via internet já descarta de cara uma camada que é a mais vulnerável. E tem uma bomba relógio do que vai derivar da suspensão auxílio emergencial.
Falando em política, há um crescimento exponencial da chamada bancada ruralista, que tem muita força no Congresso. Como você analisa essas características e também uma constante instabilidade política nos últimos anos em relação à base da sociedade?
A bancada ruralista tem muito poder e é bastante responsável por este processo tenebroso que vivemos. O sistema político não conseguiu se reformar dentro de uma perspectiva mais democrática e a existência dessa bancada ruralista prova isso, pois seu tamanho não representa, nem de longe, sua representatividade. O fato é que, a partir de privilégios que recebe de longa data, dispõe de um poder econômico bastante efetivo para criar esta distorção. Após o golpe em 2016 e o processo que se seguiu, foi imposto um projeto das elites exclusivamente voltado para a defesa de seus interesses particulares. O governo Bolsonaro, enquanto uma aberração gerada neste processo, produz permanente instabilidade para os ruralistas porque, ao mesmo tempo que atende servilmente as demandas desta bancada, a deixa insegura com comportamentos que podem impactar os seus negócios. Assiste-se a situações paradoxais como, por exemplo, as preocupações dos ruralistas com as repercussões do desastre ambiental que o governo está produzindo. Logo eles que têm, historicamente, uma enorme responsabilidade. Outro exemplo refere-se às declarações completamente destrambelhadas que são dadas por altas figuras do governo em relação à China. O agronegócio fica com o coração na mão diante do risco daquele país perder a paciência e procurar outros fornecedores de commodities distantes do agronegócio brasileiro. Então, eles estão nessa situação de terem criado este monstro e não saberem o que fazer com ele nesse jogo político perverso que vive o Brasil.
Nós estamos chegando em breve às eleições municipais. Quais são os instrumentos e reivindicações, no sentido de mitigar a fome, por meio de políticas via prefeituras?
A agroecologia vêm sendo punida com todos esses retrocessos no plano federal. Mas sua forma prioritária de atuação é a partir dos territórios. Por isso, as eleições municipais adquirem uma importância particular. Coloca-se, agora, a oportunidade de que candidaturas realmente engajadas na defesa dos interesses da população construam, de forma participativa, propostas que poderão representar grandes avanços uma vez eleitas. Faz pouco tempo que fui convidado para uma reunião da candidatura da Manoela D’Ávila e do Miguel Rossetto, para a prefeitura de Porto Alegre (RS), e eles estão fazendo um sistema de campanha muito interessante. Estão escutando as reivindicações da agricultura familiar e da agroecologia para construir um programa, assim como vão fazer com a saúde, educação e outras áreas. Em Porto Alegre, existe uma militância com muitas experiências avançadas nessa área e, nessa reunião, foram mostradas muitas possibilidades, como a reativação de mercados, a organização de feiras etc.
A discussão sobre iniciativas que podem ser feitas a nível municipal exige que sejamos criativos nesse momento. Pensar, por exemplo, na articulação da agricultura familiar com cooperativas e associações urbanas de consumidores tem muito potencial. A pandemia criou uma cultura de comunicação remota. Então, vamos potencializar essas possibilidades. Utilizar melhor esses instrumentos de participação em um processo, inclusive, de modernização em municípios com uma realidade rural mais forte. Vai ter que se ousar nesse sentido, porque a agricultura familiar não pode virar presa daquilo que o agronegócio fala dela, de que é algo do passado e não se renova.
Em uma entrevista, você destacou as desigualdades regionais no país e também afirmou que a extrema pobreza tem raça e sexo no Brasil. Gostaria que você explicasse melhor esses temas.
As regiões Norte e Nordeste viveram, até 2014, processos significativos de redução da pobreza em relação às demais regiões. Isso não quer dizer que não existisse pobreza e extrema pobreza nelas mas, quando a curva faz a inflexão e elas voltam a crescer mais aceleradamente, essas regiões são bastante afetadas. O consórcio dos governadores do Nordeste denunciou que estavam privilegiando as regiões Sul e Sudeste com o Bolsa Família e o Nordeste sendo bastante discriminado. Isso pode se constatar com os dados disponíveis para o programa. Você tem a questão das cisternas no Semiárido, por exemplo, que, ao olhar o orçamento, se vê que o programa foi derrubado, a partir de 2017. Uma série de políticas desmanteladas ou congeladas em determinadas regiões, que trazem um agravamento em relação às desigualdades regionais. Portanto, não foi algo por acaso. Houve intenção nesse desmonte.
Quanto aos negros e às mulheres, uma prova, entre várias, de que existe discriminação e que dela resulta o empobrecimento maior para eles, é a comparação dos dados de desemprego. Independente da pandemia, quando se classifica por raça ou gênero, os números expõem essas diferenças. Mulheres e negros lideram as demissões, com índices muito mais elevados do que homens brancos. Então, esse crescimento da extrema pobreza volta a se expressar novamente nos grupos que já sabíamos que eram os mais afetados em tempos de crise. Se você analisar os salários que são pagos para a mesma função, novamente aparecem diferenças muito nítidas.
O Brasil não paga suas dívidas históricas.