A quem interessa a prostituição? Papo PAUER com Michelly Longo e Leona T
É necessário entendermos a prostituição como um dos recursos e tecnologia do capitalismo.
É necessário entendermos a prostituição como um dos recursos e tecnologia do capitalismo. Desta forma, para que haja a sua materialização na sociedade é necessário evoluir de acordo com o contexto social, sendo o meio tecnológico uma estratégia. Ou melhor dizendo, a revolução industrial como um fator determinante para o seu desenvolvimento.
Por ser mutável, esse meio tende a seguir à risca determinadas condições para o seu processo de evolução. Portanto, para falar sobre a relação do capitalismo com a prostituição é fundamental nos contextualizarmos sobre o seu avanço. O mercado de trabalho informal da prostituição se transmutou das ruas/pistas para ambientes privados – no qual existia uma barreira de vidro entre o cliente e a prostituta não podendo tocá-la, apenas vê-la. Após essa roupagem, surge o sexo por telefone, isto é, a partir desse momento a voz que determina a sua valia.
Com isso, a cultura da prostituição começou a ser maquiada e direcionada a revistas pornôs, criando uma hierarquia nessa indústria em oposição as que se encontravam na rua em virtude da tamanha repercussão gerada através desse movimento capitalista. Entretanto, com o surgimento dos DVD’s a polarização de conteúdos eróticos e sexuais começaram a surgir.
Sendo assim, houve um investimento na indústria pornográfica para criação de filmes pornôs. O que por sua vez, abriu espaço para criações de canais de TV’s pornográficos produzirem seus conteúdos. Contudo, com a chegada das redes sociais, viralização de sites e aplicativos, houve uma elitização por parte dos consumidores a fim de levar a prostituição a esses espaços virtuais. Mas a pergunta que não quer calar é: será que as travestis, sobretudo pretas periféricas, evoluíram em conjunto e a partir de toda essa sofisticação?
A travestilidade e a prostituição
De acordo com Michelly Longo, criadora de conteúdo digital, moradora de Trancoso, no estado da Bahia, existe a necessidade de entendermos primeiro a realidade dessa população para depois questionarmos a evolução da travesti com e na prostituição. Ao perguntar sobre a sua vivência como uma travesti, ela me respondeu: “logo que comecei a transição eu escutava as meninas falando: travesti ou tem uma renda própria, ou tem que ir para prostituição”. Em seguida, ela ainda reiterou: “fiquei com isso na cabeça, ainda estudava e me encontrava na casa do meu pai, com 16 anos de idade sai de casa e comecei a trabalhar como auxiliar de fantasia de carnaval, como também em campanha política para ter uma renda”.
Ao conversar sobre a sua vulnerabilidade social na época, Michelly desabafa ainda sobre um acontecimento significativo em sua vida. Mas tudo isso foi ocasionado em virtude do afastamento de seu pai. Acontece que em um dado momento quando retornou a sua casa – onde morava apenas com seu pai e sua irmã – encontrou um bilhete escrito pelo o seu pai dizendo que tinha ido embora e não voltaria mais. Sendo assim, teve que cuidar da sua irmã sozinha – mesmo sendo a Michelly uma criança ainda. E foi exatamente nessa circunstância que se encontrou à mercê do mundo da prostituição: “quando uma amiga minha, também travesti que já fazia programa há algum tempo me viu nessa situação, ela me disse: ou você vai passar fome durante quinze dias, caso você encontre um emprego formal, ou você pra rua pra ter comida na mesa”, afirma.
Observa ainda como os estereótipos do corpo da travesti é sempre ligado a prostituição. “Muita gente acredita que sou uma prostituta de pista, ando na rua cotidianamente e os carros param para me perguntar isso. Não creio que seja um problema, porque a única válvula de escape pra travesti é essa, fazem desse espaço nossa legitimidade, visibilidade”, constata. O que se faz perceptível quando 90% dessa população se encontra na prostituição segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).
Para além dessa perspectiva, ela relembra ainda alguns acontecimentos no qual esteve fadada a sofrer quando, sem escolha, se disparou na prostituição naquela época. Em nossa entrevista, ela me relatou que um dos fetiches dos seus clientes era colocar a arma em sua boca: “se você não chupar direito vai receber uma bala no meio da boca”, dizia o cliente enquanto Michelly fazia o seu serviço. Dessa forma, um pânico foi instaurado, como diz ela “sai da pista para fazer uma coisa, cheguei lá era outra, pensei que eu ia morrer na hora”.
E mesmo com esse sentimento, não poderia ela demonstrar já que isso poderia alimentar a euforia da outra pessoa. Lembra ainda que nesse mesmo dia nem recebeu o pagamento todo, apenas a metade. Além disso, esse homem cisgênero deixou-a no meio da estrada, uma distância de aproximadamente 25 quilômetros da pista em que foi pega. Porém, enquanto narrava esse acontecimento, desabafou: “naquele momento só de ter descido do carro e com vida aquilo já era bom pra mim”.
Relembra outros contextos, ainda, como quando um dos seus clientes quis a sequestrar. Acontece que no meio da estrada, com o carro tendo uma crescente de velocidade, ela perguntou o que ele estava fazendo e em seguida respondeu que ia a sequestrar. No mesmo momento abriu a porta do carro (que se encontrava em alta velocidade) e se jogou. “Quando abri a porta do carro, caí direto numa ribanceira, tenho marca até hoje, mesmo assim ele foi me procurar com uma lanterna e me escondi no meio do mato, entrei de baixo do capim”, diz ela. Continua, “ele ia me carregar e ninguém ia dar falta porque era uma travesti”.
E é exatamente neste momento que retorno com o questionamento feito no início da coluna, será que a travesti evoluiu assim como a tecnologia da prostituição? É necessário lembrar que a sua existência nesse espaço, quando se trata de travestis pretas/periféricas, ainda é por sobrevivência. Disparando, assim, em narrativas onde existirá briga até mesmo entre elas – ato que muitas pessoas cisgêneras usam para justificarem o motivo de serem transfóbicas.
Porém, essa “desunião” acontece por duas possibilidades, como destaca Michelly: “a briga por cliente e a briga pelo ponto”. Ela ainda explica melhor: “tudo começa pela cafetinagem, as meninas que saem do interior para ir pra capital terão que passar pela cafetina, até porque dificilmente quando chegam terão um piso e por isso vão pra rua, e para trabalharem lá é necessário ter uma cafetina”.
Entretanto, para conseguirem seus clientes existe uma pirâmide a ser seguida, como por exemplo: ter pênis, – quanto maior for, melhor -, caso o contrário menor condição de ser consumida; deve estar siliconada, de xuxu feito, melhor dizendo, quanto mais “aparentar” feminilidade maior a condição de ser consumida; estar apta a usar drogas como uma medida de conseguir a mais que a hora também é um dos requisitos; entre outros.
É necessário atenderem esses requisitos e passarem 24 horas na rua, até porque caso essa mesma travesti retorne a sua cafetina sem o dinheiro, será despejada e a rua se tornará a sua moradia na mesma hora, como diz Michelly: “quando é com a gente é brando demais, ou extremo”. Assim sendo, nos tornamos apenas uma trava higienizada e materializada na prostituição, como uma medida de extrair de nós nossa potência. Nos expondo a AIDS e, no atual cenário, ao COVID-19.
Onde encontra-se a expectativa de vida para uma travesti?
“A gente como travesti não pensa no futuro, o nosso futuro é agora”, assim começa Leona T, professora, atriz, influencer, prostituta travesti que atualmente mora em Portugal, em nossa entrevista. Fala importante tendo em mente que a expectativa de uma mulher trans/travesti é de 35 anos – menos da metade da média nacional – segundo a ANTRA. Contudo, quando falamos de uma mulher trans/travesti preta essa mesma estimativa caí para 28 anos.
Ao falar sobre a prostituição, Leona destaca em sua análise o fato de reconhecer os seus privilégios, “o meu lugar é diferente do lugar da Michelly, porque ela é preta, periférica, eu tive alguns acessos que ela não teve, fui na contramão deles”, justifica. Uma das circunstâncias mencionadas é o fato de a oportunidade no mercado de trabalho ser um dos fatores essenciais para subverter essa realidade. Por isso lhe pergunto: será mesmo que você que está lendo essa coluna, caso seja um dono de comércio, gerente, ou alguém que promova empregabilidade, contrataria uma pessoa transvestigênere?
Dessa maneira, perguntei a Leona a sua relação com o trabalho como uma travesti, e ela me respondeu: “por entender que sou mais privilegiada, tentei entrar diversas vezes no mercado de trabalho, até por que tenho especialização linguística em inglês e italiano, fiz faculdade de letras, pedagogia e filosofia e pós graduação em gestão escolar e psicopedagogia, porém, sempre esbarrei na questão da passabilidade porque não quero ser passável, abomino esse lugar”. Passabilidade é quando um corpo transvestigênere é lido como cisgênero, entretanto é utópico pensar que uma pessoa trans e travesti pode ser e agir como cisgênero, tendo em mente que a partir do momento em que se “descobre” a identidade desse individuo, a cisgeneriedade não ausentará a sua violência.
Além disso, aponta também que após tantas procuras houve uma oportunidade. E nesse mesmo ambiente de trabalho sofreu assédio e transfobia, só que como o corpo em questão é de uma travesti, não há mobilização para reparar tal atitude. O que fez ela desistir por não haver medidas e políticas públicas a fim de garantir e assegurar os seus direitos. O que por sua vez, fez com que Leona entrasse para a prostituição e fosse para Portugal, “depois de ter sofrido, vim pra cá e já estava rolando o Covid-19 e se eu não entrasse nesse trabalho iria perder minhas oportunidades, tive que escolher entre minha vida, planejamento de futuro ou voltar para o Brasil”. Necessário lembrar que o Brasil lidera durante treze anos consecutivos o ranking mundial como o país que mais mata a população trans e travesti.
Assim sendo, a indaguei a respeito da realidade de uma travesti em Portugal, e ela prontamente respondeu: “aqui em Portugal as leis em tratamento relacionada a mulheres trans e travestis ainda são nulas – digo nulas porque ainda realmente não existe uma legislação a fim de amparar corpos trans, em todos os sentidos legais”. Contudo, quer uma exemplificação dessa afirmação? Simples, a Gisberta, uma travesti brasileira que morava em Portugal, brutalmente assassinada. Inclusive foi homenageada no Brasil pela Maria Bethânia que cantou a música “Balada de Gisberta” em seus shows: “a distância até ao fundo é tão pequena, no fundo, é tão pequena a queda”, assim é a composição de um dos trechos da música.
Nesse sentido, Leona relembra a situação da Gisberta: “os jovens depois de violentá-la jogaram o seu corpo no poço e a polícia tratou como caso comum de homicídio e não houve a contabilização de todos os envolvidos”. “Até porque todos eram menores de idade, não existe um centro ou punição legal para menores, portanto, não existia uma forma para que isso fosse pra frente”, justifica. Entretanto, de acordo com o seu relato, por mais que essa população consiga mais dinheiro lá, a mesma está isenta muitas vezes de proteção.
Na realidade, a única que existe vem diretamente das Organizações Não Governamentais (ONGS), “que trabalha a fim de amparar, educar, reeducar, inserir no mercado de trabalho e no asilo, – existe a possibilidade de fazer pedido de asilo para ficar em Portugal, pela compreensão da realidade dessas pessoas no Brasil -, no contexto de higiene pessoal e na segurança das meninas na prostituição”, afirma Leona.
O futuro é travesti
Para finalizar a entrevista, perguntei a cada uma como ambas enxergam o futuro para essa população, em seguida, Michelly me respondeu: “assim, acho que a gente enquanto trans e travesti a nossa vida cheira a sangue e a morte”. “A travesti quando sai da sua casa ela está indo para o campo de batalha – e nele, ela está em busca de viver ou morrer, só tem essas duas opções, não existem outras”, justifica.
Todavia, ela reitera que “cada dia que acordamos, que respiramos, que saímos e voltamos com saúde é uma vitória, temos que agradecer por estarmos vivas”. Faz ainda uma observação ao fato dela e a Leona terem ultrapassado a expectativa de vida destinada aos seus corpos. Importante ressaltar aqui que a mesma se encontra desempregada, e está tentando ter uma casa própria – comprando seu terreno para construir a sua casa. Sendo assim, ela pede a ajuda de vocês para contribuir com o seu sonho mandando uma determinada quantia para o seu pix: [email protected]
“Eu peço ajuda as pessoas que quiseram e puderem contribuir, porque eu não tenho como construir agora pagando aluguel, despesas de casa… Então sempre mando o meu pix que vai direto pra minha conta bancária, posso fazer até uma comprovação”, diz Michelly Longo.
Ainda sobre as possibilidades para corpos que desobedecem a norma de gênero e sexualidade, Leona diz: “na década dos 90 e 2000 lembro o quão difícil era fugir da marginalização que a rua propicia, nós vivíamos na época em redutos, ali era o nosso mundo, fugindo dali não existia travesti, ou seja, não existia outro espaço para nós”. “A história da Brenda Lee que veio pra São Paulo para criar uma casa onde essas pessoas pudessem ficar, de Cris Negão (mesmo negativa), de Andréia de Maio e tantas outras, nos mostra todo esse movimento e a conquista do tempo de lá pra cá”, afirma.
Como diz ela, construir as nossas possibilidades também é sobre “existir um futuro travesti, um patrimônio travesti, Brenda Lee dizia isso, afinal ela queria deixar para as gerações futuras um patrimônio travesti para que elas enxergassem que nada foi em vão”. Reitera ainda o fato de estarmos cada vez mais presentes nos espaços, existindo cada vez mais “travestis cantoras, atrizes, candidatas a vereadoras, deputadas”, como diz ela “nossa presença é a nossa vitória, e essa vitória é a nossa prosperidade”. Afinal, necessitamos estar nos espaços para travá-los e subverter essa ótica etnociscentrista promovida pela transfobia.