A proibição das toucas de natação para cabelos afro nas Olimpíadas Tóquio 2020 e o racismo estrutural
O acessório é adequado para os cabelos cacheados e crespos, com tranças e deadlocks. O veto pela Fina reflete a dificuldade dos negros em adentrar às piscinas.
Por Naiara Ashaia para a cobertura colaborativa da NINJA Esporte Clube
Ossos pesados, tendão curto, falta de incentivos, dificuldades financeiras. De explicações sociais a fisiológicas, o fato é que o negro ainda está distante das piscinas. E isso se perpetua apesar dos esforços do Soul Cap. A empresa britânica, responsável por criar uma touca de natação criada para nadadores com cabelos afro, viu a luta por visibilidade e respeito aos cabelos dos negros ser barrada pela Federação Internacional de Natação (Fina), que proibiu o uso do acessório.
“Ser abençoado com cabelos volumosos não deve vir com a maldição de produtos químicos agressivos ou produtos medíocres.”
A frase acima, que recebe os visitantes no site da empresa britânica, reflete o propósito do produto desenvolvido: respeitar os corpos negros e permitir uma maior representatividade nas piscinas.
As toucas da Soul Cap são maiores do que as comumente utilizadas na natação. A proposta é que os cabelos cacheados e crespos, as tranças e dreadlocks estejam protegidos do cloro da piscina e dos produtos utilizados para que se encaixem no pequeno espaço do acessório tradicional.
Com Alice Dearing, a primeira mulher negra a representar a Grã-Bretanha em uma competição olímpica de natação, como embaixadora, logo no início de julho a marca foi surpreendida com uma nota da Fina. Após a requisição da empresa britânica, a federação negou o uso do acessório, afirmando que as toucas não se ajustam “à forma natural da cabeça”. Em entrevista à BBC, a Soul Cap relatou que a Fina destacou que “os atletas que competem em eventos internacionais nunca usaram, nem exigem toucas desse tamanho e configuração”.
A repercusão negativa e mal recebida pelos poucos atletas negros que adentram piscinas em campeonatos internacionais fez com que a federação lançasse mais uma nota, em 5 de julho. Nela, ressalta a importância da inclusão e representatividade e afirmou que revisaria a proibição. “A Fina está empenhada em garantir que todos os atletas de esportes aquáticos tenham acesso a trajes de banho adequados para a competição, garantindo que estes itens não configurem uma vantagem competitiva”, aponta a federação.
Porém, essa restrição vai além de um acessório utilizado em um campeonato: reflete a exclusão da população negra em ambientes ainda pouco representativos. Segundo a Soul Cap, as toucas para cabelos afro podem reduzir as barreiras que a natação coloca para homens e mulheres no mundo todo.
Os próprios fundadores da marca, Michael Chapman e Toks Ahmed-Salawudeen, cresceram sem saber nadar por acreditarem que essa modalidade não era para eles. Ainda na entrevista para a BBC, eles contaram que a ideia da touca surgiu em 2017, quando iniciaram aulas de natação e ouviam as reclamações sobre o acessório tradicional, principalmente de mulheres negras.
Na segunda-feira (19), um grupo antirracista de membros do Parlamento Europeu se mobilizou contra a proibição. Direcionada à Thomas Bach e Sebastian Coe, presidentes do Comitê Olímpico Internacional (COI) e do Atletismo Mundial, a carta solicita a permição do uso das toucas desenvolvidas pela Soul Cap, alegando que a decisão de vetá-las “reflete a estigmatização do cabelo negro e leva a desigualdades institucionais, especialmente visando mulheres negras”.
Negros na natação
A natação ainda é um esporte excludente. A primeira nadadora negra a ganhar uma medalha de ouro na história dos Jogos Olímpicos conquistou essa vitória apenas em 2016: Simone Manuel, dos Estados Unidos. Na época, a nadadora declarou: “Espero que, no futuro, haja mais de nós e não apenas a ‘Simone, a nadadora negra’”.
No mesmo ano, das oito finais de natação que o Brasil estava representado, apenas três tinham nadadores negros. O capixaba João Gomes Júnior nadou 100m peito e o 4×100 medley. Já a pernambucana Etiene Medeiros competiu nos 50m livre. Nessa ocasião, nenhum brasileiro medalhou. Ambos fazem parte dos quase 6% dos atletas negros que já representaram o país em Olimpíadas. A explicação para dados tão alarmantes está no racismo estrutural. No Brasil, até 1950 apenas brancos podiam frequentar piscinas em clubes.
A falta de estímulo, de representatividade e os altos custos para praticar o esporte separam negros e brancos ainda no primeiro contato com a natação. Cientificamente, não há comprovação que a diferença óssea e a quantidade de gordura corporal interfiram no rendimento de nadadores.
Sobra, então, apenas o racismo, que condiciona atletas negros a se adequarem ao padrão de esportistas brancos. Apesar disso, cada vez mais a população negra se levanta não só como resistência mas também como agente de mudança, assim como são as toucas desenvolvidas pela Soul Cap.
A competição de natação inicia no dia 24 de julho, às 7h40 (horário de Brasília). Até o momento, a Fina não se posicionou sobre a permissão do uso das toucas para cabelos afro.