Por Kriska Carvalho

Imagine um país onde políticos podem roubar o dinheiro público, fraudar licitações, manipular emendas bilionárias, cometer crimes ambientais, fazer negociatas escusas — e ainda assim decidir se serão investigados ou não. Parece roteiro de distopia? Pois é exatamente o que pode acontecer se a chamada PEC do Foro avançar no Congresso

O discurso oficial é sedutor: “Acabar com privilégios”, “tornar todos iguais perante a lei”. Mas o contexto atual não é de um Congresso comprometido com transparência, e sim de um grupo majoritário que busca blindagem mútua após escândalos e investigações. Vendida como fim do foro privilegiado, essa PEC pode criar uma nova camada de imunidade para políticos.

Hoje, deputados e senadores são julgados no Supremo Tribunal Federal quando cometem crimes relacionados ao mandato. Em 2018, uma decisão limitou esse alcance, permitindo que apenas crimes cometidos durante o mandato e relacionados à função fossem julgados pelo Supremo. Mais recentemente, o próprio STF flexibilizou essa regra, ampliando novamente o alcance do foro.

A nova PEC vai além: transfere processos para instâncias inferiores e abre espaço para que o Congresso tenha poder de barrar investigações, restaurando a exigência de licença prévia que existia até 2001. Na prática, isso significa que os próprios investigados decidirão se um processo contra eles poderá avançar.

Os defensores dizem que transferir para a primeira instância evita “engavetamentos” no STF. Mas tribunais locais são muito mais suscetíveis à pressão política e econômica. É muito mais fácil para um deputado influenciar um juiz de sua base eleitoral do que um ministro do Supremo. Restaurar a autorização prévia do Congresso cria um escudo quase intransponível: um plenário composto por aliados decidindo se um colega investigado deve responder judicialmente.

Não é a primeira vez que se manipula regras do foro para autoproteção. Durante a ditadura, a Justiça foi usada para perseguir opositores e blindar aliados. No período democrático, Assembleias Legislativas barraram investigações contra colegas. O resultado é sempre o mesmo: impunidade.

Investigações como as da máfia das ambulâncias, desvios do orçamento secreto e fraudes em obras públicas só avançaram porque houve independência do Ministério Público e autonomia do Judiciário. Se a PEC passar, crimes de desvio de verbas, compra de apoio político e lavagem de dinheiro poderão nunca chegar a julgamento. Isso não é apenas sobre foro; é sobre soberania popular. A Constituição diz que “todo poder emana do povo”, mas essa proposta cria um poder que emana de si mesmo e para si mesmo, transformando representantes em intocáveis.

O mandato eletivo é um contrato de confiança: o eleitor entrega poder ao representante para que atue pelo bem comum. A PEC inverte o contrato e dá ao representante o poder de se proteger de qualquer consequência, mesmo quando trai o interesse público. Estamos diante da criação de uma casta política acima da lei, uma aristocracia moderna que vai se proteger primeiro e legislar em causa própria.

A votação exige dois turnos na Câmara, com 308 votos em cada. Se o debate não chegar às ruas, o resultado será decidido nos corredores do poder. Não basta esperar pelo “bom senso”. Sem pressão social, mudanças constitucionais tendem a favorecer quem as propõe. É hora de ligar para gabinetes, enviar e-mails, lotar as redes sociais de deputados, participar de audiências públicas, criar petições e ir às ruas. A defesa de uma Justiça independente não é pauta de um partido, é pauta de todos.

O foro privilegiado, como está, já precisa de reforma séria e transparente. Mas uma mudança conduzida às pressas e com intenções escusas será uma tragédia institucional. Não podemos permitir que, sob o pretexto de igualdade, se crie um sistema que torne políticos intocáveis. Se essa PEC passar, não será apenas um retrocesso jurídico, será a legalização da impunidade.