Por Ivan Ferraro
Músico, Diretor da Feira da Música, e atual Presidente da ABRAFIN – Associação Brasileira de Festivais Independentes.

Nos últimos anos, a música independente tem conquistado um espaço sem precedentes no Brasil e no mundo. O que antes era considerado movimentos alternativos, hoje se consolida como uma das forças mais vibrantes e relevantes do mercado musical. Mais do que um fenômeno de nicho, o setor independente expressa hoje uma profunda transformação no modo como se produz, distribui e consome arte no país — e, ao mesmo tempo, escancara as fragilidades das políticas públicas e econômicas que deveriam sustentá-lo.

De acordo com dados recentes, o mercado independente já representa quase 50% da participação mundial na música gravada. No Brasil, mais de 70% da receita gerada por artistas brasileiros no Spotify em 2023 veio de produções independentes. O mercado da música gravada, segundo a Billboard Brasil, cresceu 21,7% em 2024, impulsionado pelo streaming.

Esses números são significativos: mostram que a criação musical brasileira está mais viva e autônoma do que nunca. Mas revelam também um paradoxo. Apesar do crescimento, a estrutura que deveria dar suporte a esse movimento — políticas públicas, financiamento, regulação e governança — permanece frágil, desigual e concentrada.

Crescimento sem sustentação

O streaming e as plataformas digitais democratizaram o acesso à música, mas também criaram novas formas de dependência. O poder de visibilidade e remuneração está nas mãos de poucos intermediários globais. A ausência de transparência nos dados e na distribuição de royalties reforça a desigualdade entre artistas e regiões.

Além disso, a concentração geográfica da Indústria musical brasileira — fortemente centrada em São Paulo e Rio de Janeiro — mantém o país culturalmente assimétrico. Enquanto isso, cenas vibrantes do Norte, Sul, Nordeste e Centro-Oeste, com poucas exceções, continuam invisibilizadas pela falta de estrutura e de políticas apropriadas.

O que se observa é um crescimento quantitativo sem base estrutural. A música brasileira se expande no ambiente digital, mas o ecossistema que a sustenta — casas, festivais, selos, espaços culturais, circuitos regionais — opera de forma incipiente, sem continuidade e com pouca ou nenhuma política de Estado.

Responsabilidade institucional e política econômica

Nesse contexto, é urgente recolocar as instituições governamentais e não governamentais no centro do debate. O Ministério da Cultura, a Funarte, as Secretarias Estaduais e Municipais, o Conselho Nacional de Política Cultural e o Fundo Setorial do Audiovisual têm papel essencial na formulação de uma política nacional para a música — uma política que vá além do fomento pontual e avance em direção à estruturação econômica do setor. Do mesmo modo, entidades da sociedade civil como o Circuito Fora do Eixo, a ABRAFIN (Associação Brasileira de Festivais Independentes), ABMI (Associação Brasileira da Música Independente), BM&A (Brasil Música e Artes), a UBC (União Brasileira de Compositores), a Abramus, a Socinpro, e todos os membros do ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), e ainda uma infinidade de organizações de setores, coletivos e redes regionais, têm atuado na base, defendendo direitos, promovendo formação e articulando circuitos alternativos.

Mas nenhuma dessas instituições — sozinhas — pode suprir a ausência de uma política econômica integrada. É responsabilidade do Estado coordenar esforços, criar instrumentos de financiamento permanentes, descentralizar recursos e garantir transparência na cadeia produtiva.

Empreendedorismo e precarização

O discurso contemporâneo do empreendedorismo criativo trouxe ganhos, mas também contradições. Ele promove a autonomia e a profissionalização, mas frequentemente individualiza problemas estruturais, transferindo para o artista a responsabilidade de sobreviver em um sistema desigual.

Sem políticas públicas sólidas, o artista independente se torna empreendedor por necessidade, e não por escolha. A criatividade se mantém, mas à custa de sobrecarga, informalidade e insegurança. A liberdade artística precisa caminhar junto com proteção social, capacitação técnica e regulação justa das plataformas digitais.

Proposições para um pacto cultural

A consolidação da música independente brasileira como força econômica e simbólica nacionalmente exige um pacto público entre Estado, mercado e sociedade civil. Algumas diretrizes urgentes incluem:

  1. Criação de uma Política Nacional da Música, articulando fomento, formação, circulação e sustentabilidade, com foco em descentralização e diversidade.
  2. Regulação das plataformas de streaming, com transparência nos dados e redistribuição mais equitativa de receitas.
  3. Fortalecimento das entidades de gestão coletiva, ampliando participação, eficiência e governança democrática.
  4. Incentivo a redes, cooperativas e circuitos independentes, com linhas específicas de financiamento público e apoio institucional.
  5. Programas de formação em gestão, produção e tecnologia da cultura, priorizando artistas e agentes culturais de regiões fora dos grandes centros.
  6. Reconhecimento da música como eixo estratégico da economia criativa e da política de desenvolvimento nacional, e não apenas como entretenimento.

A cultura como infraestrutura de país

A música independente não é apenas uma vertente do mercado cultural — é expressão de autonomia, trabalho e cidadania. Ela revela que a cultura não é ornamento, mas infraestrutura pública essencial para o desenvolvimento humano e democrático.

Tratar a música apenas como produto é reduzir seu potencial político. O Brasil precisa de uma política econômica para a cultura que reconheça o valor da criação e garanta as condições materiais para que artistas possam existir, viver e produzir.

Sem isso, o risco é que a independência se converta em isolamento — e que a potência criativa brasileira siga refém de um sistema global que monetiza o talento, mas não o sustenta.

Em síntese: fortalecer a música independente é fortalecer a própria democracia cultural. É reconhecer que o som do país não nasce nas gravadoras, mas nas ruas, nas periferias, nas redes e nos territórios. E que garantir sua sobrevivência é tarefa não apenas dos artistas, mas de todas as instituições que têm responsabilidade pública sobre o futuro da cultura no Brasil.

O papel da Feira da Música em 2026

A Feira da Música acompanha e celebra essa transformação — um movimento que redefine o presente e o futuro da música brasileira e reafirma seu compromisso como espaço de articulação, reflexão e ação. Mais do que um encontro de negócios, a Feira é um território de convergência política e cultural — um lugar onde se pensam soluções coletivas, se constroem redes de solidariedade e se celebra a multiplicidade da música brasileira.

A música independente não é apenas um mercado em ascensão: é uma expressão de autonomia, resistência e invenção. É a afirmação de que a cultura pode ser livre, descentralizada e diversa — desde que continue a ser tratada como um bem comum, e não apenas como produto.

No fim das contas, fortalecer o setor independente é fortalecer o direito de todos, todas e todes de criar, produzir e viver de música. E essa é uma pauta que é, antes de tudo, política.