A mensagem revolucionária de páscoa: a luta coletiva
Nenhuma data ou mensagem cristã é tão poderosa quanto a páscoa. Relembrar-se da morte e ressurreição de Jesus é relembrar o caminho de libertação de um povo escravizado e oprimido.
Por Camila Mantovani e Rachel Daniel
Nenhuma data ou mensagem cristã é tão poderosa quanto a páscoa. Relembrar-se da morte e ressurreição de Jesus é relembrar o caminho de libertação de um povo escravizado e oprimido.
A bíblia será sempre um livro precioso justamente por contar, do começo ao final dela, a história de libertação desse povo e de um Deus que se manifesta pra humanidade na História. É na bíblia que conhecemos um Deus que sempre se posicionou do lado da justiça, contra as opressões, explorações e que nos convoca para nos posicionarmos também. A neutralidade que muitos pregam, inclusive, nunca foi o lugar para onde fomos chamados.
Desde a libertação do povo hebreu no Egito até a ressurreição de Jesus, temos exemplos bonitos, fortes e claros de como Deus abomina sistemas de injustiça que exploram uns para dar poder e acúmulo para outros. E é por isso que nos colocamos como cristãs que compreendem a luta anticapitalista como um dever, que entendem o patriarcado, racismo e as diversas opressões como pecados estruturais e que reivindicam a memória bíblica como uma narrativa de liberdade e não de controle de pessoas. Mais do que isso, como mulheres, reivindicamos nosso protagonismo nas histórias de libertação bíblica e nosso lugar de ação em anunciar e lutar pela liberdade do povo.
Os caminhos de libertação
Em êxodo, o faraó, para garantir que não perderia o controle do povo hebreu escravizado e que não perderia a mão-de-obra, convoca duas parteiras – Sifá e Puá – e as ordena que matem os bebês do sexo masculino. No entanto, essas duas mulheres desobedecem a Faraó e deixam que todos os bebês vivam – “e o povo continuava a aumentar, tornando-se muito forte” (êxodo 1). A rebeldia das mulheres hebréias contra esse decreto de morte foi o que assegurou um povo numeroso e forte que mais adiante macharia pela própria libertação.
Muito parecido com o que vivemos nesse país desde que invadido, na escravização dos povos, na quantidade de sangue negro e indígena derramado, na necropolítica que segue em vigor, nos decretos de extermínio. Seguimos vivos pelo mesmo espírito rebelde que motivou as mulheres hebreias lá atrás. “Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer.” Assim como foram muitos os desafios dos hebreus, mesmo depois da saída do Egito, nós temos grandiosos desafios enquanto povo tão covardemente explorado, escravizado e perseguido. O desafio de compreender nossa própria força, a força que reside na coletividade e que tem construído um caminho para a liberdade. Ainda que existam Moisés, que estarão lá, nos palácios, brigando com os faraós, ainda que existam as vozes dos profetas que gritem em favor do povo, nós precisamos entender o que o povo hebreu compreendeu na história: não importa que Moisés brigue por nós, se nós não marchamos. Não importa quantos “salvadores” se levantem e falem por nós, se nós não construímos nossa própria salvação.
Na história bíblica que segue: Raabe, a prostituta, esconde os hebreus em sua casa, o que lhes garantem a conquista da terra; Débora, a Juíza, que, no tempo em que o povo não tinha quem os governasse, conduz o exército à vitória e lhes garantem 40 anos de paz; Ester que convence o rei que revogue o decreto que assassinaram todos os judeus do seu reino; Ana, a profetisa, anuncia o nascimento de Jesus e pode presenciar sua vinda antes de morrer. Uma grande mobilização de mulheres (não só delas claro) para continuar o que Sifá e Puá começaram – as palavras de libertação e as lutas sempre serão protagonizadas pelo povo oprimido e marginalizado.
Segundo a tradição, o caminho da libertação do povo se consumaria com a chegada de Jesus que é anunciada a Maria. Jesus que se organizou comunitariamente para lutar contra o império romano que os explorava e que mais uma vez traz pra nós a dimensão coletiva da luta pela liberdade.
A vinda de Jesus
“Não havia nada de atraente nele, nada que nos levasse a olhá-lo com atenção. Ele foi desprezado e ignorado, um homem que sofreu, que conheceu a dor por experiência própria. Bastava olhar pra ele e as pessoas se afastaram. Nós olhamos pra ele com desprezo, pensamos que era escória. Mas o fato é que ele levou nossas doenças, nossas deformidades, tudo que há de errado em nós. Pensamos que ele era culpado de tudo isso, que Deus o estava castigando por sua culpa. Mas foram nossos pecados que caíram sobre ele, que o feriram, dilaceraram e esmagaram – nossos pecados!”, como o profeta Isaías anunciou.
É com a morte de Jesus que o pecado do casamento do Estado com a religião são denunciados, é com a morte de Jesus que fica claro que o império escolhe quem vive e quem morre, é com a morte de Jesus que é denunciada toda a opressão e política de morte – um jovem morto da forma mais cruel e punitivista do seu tempo, a cruz. Ali se consumou a mensagem de denúncia, os pecados estavam todos ali explicitados naquele corpo torturado: O pecado da dominação, da escravidão, da exploração, da desigualdade, do racismo, os pecados que estruturam as sociedades ao longo da história. Tudo estava consumado ali, naquela mensagem de subversão e profecia na morte de Jesus.
Trazer à memória o que nos traz esperança
É nesse momento de crise que a páscoa faz mais sentido para nós – a mobilização de um povo que busca libertação, os anos nos deserto, a luta por sobrevivência, o protagonismo das mulheres na anunciação da liberdade do povo, e a vinda de um Deus que se fez corpo negro em Nazaré, que denunciou o império e os religiosos fundamentalistas de seu tempo, profetizou a possibilidade de um novo mundo de paz, esperança e amor e foi assassinado. Em Jesus nós vimos um Deus que se recusa a estar “ACIMA DE TODOS” mas que escolheu estar NO MEIO DE NÓS.
Em Jesus se consolida a mensagem de que a luta é coletiva e que estarmos organizados é essencial para resistir às barbáries. Talvez, a maior salvação que Ele nos entregou, seja essa: nos mostrar a potência que existe quando estamos juntos contra quem nos oprime. O salvador nos salvou da ignorância sobre nós mesmos e a nossa força. O salvador nos mostrou que cada um de nós é libertador quando constrói junto os caminhos de libertação. Com um faraó que escraviza, o que faremos nós? Com imperadores que exploram, o que faremos nós? Com presidentes que desdenham das nossas mortes, que colocam o lucro acima das nossas vidas, o que faremos nós? Se olhamos pra frente e vemos o mar e atrás de nós vem o exército de faraó, o que faremos nós? Se olhamos pra frente e vemos precarização do trabalho, flexibilização das leis trabalhistas, intensificação do projeto neoliberal de privatização de tudo, e atrás de nós, perseguindo, um governo que serve a burguesia exploradora, que é adorador do deus capitalismo, que quer nos matar, o que faremos? Ouvimos o que Deus tem nos dito: “Por que clamam a mim? Diga ao povo que marchem.” (Êxodo 14:15)
O mar só se abre para o povo disposto a marchar. O mar só engole exército inimigo de povo disposto a marchar. Como diria o poeta Sérgio Vaz: milagres acontecem quando a gente vai à luta. Diante das desgraças do mundo materializadas no corpo assassinado do Cristo, só nos resta nos apegar a ressurreição. A memória viva, pulsante, visceral de que as políticas de morte, não tem a palavra final sobre nós. Em tempos de covid-19, de governo Bolsonaro, abraçados à santa memória subversiva do nazareno, marchamos (ainda que dentro das nossas casas). Marchamos construindo comunitariamente a nossa própria libertação. E quando o medo bater, nos lembramos da voz de Deus repetindo: Diga ao povo que marchem!