A liberdade é negra
Os casos recentes denunciam o racismo enquanto crime contra a humanidade e enfatizam sua dimensão institucional no país, corroendo aquelas estruturas que deveriam ser as promotoras da igualdade e dos direitos no Brasil.
No início de setembro, os muros de uma escola estadual em Juiz de Fora (MG) são utilizados como moldura para a pichação de mensagens racistas. Semanas depois, as redes sociais no Brasil são tomadas por imagens dos bastidores do Jornal da Globo, no exato instante em que o então âncora Willian Waack, em tom de deboche, define como “coisa de preto” a insistência de um motorista americano em buzinar no trânsito local. Na última quarta-feira (22), o presidente da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), o também jornalista Laerte Rímoli, usa seu perfil no Facebook para ironizar os relatos da atriz Taís Araújo quanto a experiência de racismo que seus filhos têm vivido. Para completar, em pleno Dia da Consciência Negra, um juiz mineiro define como mera “deselegância” a atitude de jovens brancos de arrancar o turbante de uma jovem negra, durante uma festa em Uberlândia (MG).
Alguma análise freudiana poderia até tentar explicar a convergência de tantos episódios de racismo às vésperas dos dias de memória, reflexão e valorização da consciência negra no Brasil. Importa, contudo, ir além da aspereza dos fatos.
O caso de William Waack não é o de um mero jornalista fazendo piada com negros. É a prova de que o racismo alcança mesmo os mais altos postos de comando – e de visibilidade, e de formação da opinião pública – da rede de televisão com maior audiência no país.
O caso de Laerte Rímoli não é o de um compartilhamento de um meme qualquer, de humor grotesco, numa rede social qualquer. É a prova de que o racismo constitui elemento identitário de figuras que ocupam posições de destaque no ilegítimo governo brasileiro – e a continuidade dos mesmos nestes cargos denota o profundo desdém com que o tema é tratado pelo grupo que provisoriamente comanda o país.
O caso do juiz mineiro não é o de uma mera condescendência de um magistrado branco julgando jovens brancos num caso de racismo. É na verdade a pura expressão do quando o Poder Judiciário brasileiro enviesa sua pretensa prática da justiça – a negros e negras tem cabido muito mais o banco dos réus, e não o das vítimas.
Imprensa, Poder Executivo, Poder Judiciário… Convém lembrar que, na configuração original da presente legislatura, apenas 22 entre os 513 deputados e deputadas federais eleitos eram negros ou negras…
A menção a todos estes casos não visa simplesmente denunciar o racismo, crime contra a humanidade, mas enfatizar sua dimensão institucional no país, ultrapassando a linha das relações sociais, corroendo aquelas estruturas que deveriam ser as promotoras da igualdade e dos direitos no Brasil.
Trata-se também de mais uma expressão da meritocracia hereditária vigente no país. Uma meritocracia que não está calcada num sistema de oportunidades iguais, mas sim num sistema de riqueza, cuja concentração em mínimos estratos da sociedade garante a perpetuação de importantes vantagens competitivas.
Não assusta, portanto, que as fotos de formatura de uma nova classe de médicos e médicas no Rio de Janeiro exibam quase que exclusivamente o rosto de jovens brancos, enquanto as fotos da greve de garis cariocas traduzam a verdadeira composição racial da cidade – majoritariamente negra e parda, assim como o restante do Brasil. Esse contraste foi muito bem percebido em recente postagem desta mesma Mídia Ninja no Facebook.
Não assusta, portanto, que os muros de uma escola pública, num bairro de classe média, sejam pichados com mensagens racistas. Não há susto, mas profunda indignação. Indignação a ser canalizada de forma positiva.
No Dia da Consciência Negra, tive a oportunidade de participar de uma manifestação nessa mesma escola estadual, em que a cultura e o protagonismo negros tiveram amplo destaque e merecida valorização. Manifestação pedagógica, democrática, reunindo todos os estudantes, professores, lideranças locais e, para provar que há esperanças de tudo isso mudar, reunindo também a própria secretária estadual de educação – negra, como a maioria dos presentes e dos alunos da rede pública no estado de Minas Gerias.
Ainda há muita luta a ser travada antes que esse racismo institucional, antes que todas as engrenagens que perpetuam a discriminação racial no Brasil cessem de vez, inaugurando uma nova Abolição. Até lá, muitas políticas públicas precisarão ser criadas, muitos outros enfrentamentos terão que ser feitos.
As estrelas negras desse Brasil (de Machado de Assis a João Cândido a Benedita da Silva e Elza Soares, do Aleijadinho a Cartola a Garrincha a Milton Santos a Tais Araújo) apontam (como as estrelas no céu escuro) oceanos de luz que a população negra desse país contribui com seu sangue, com seu suor, com suas lágrimas, para a construção nacional. Da cultura, da alma do Brasil.
Por isso é fundamental o reconhecimento público – nas escolas, onde se estuda a história deste país – do Holocausto Africano. O Holocausto Judeu gera, como é justo, profunda revulsão. Aqui não é possível cimentar o Valongo, varrer para as áreas de invisibilidade a profunda injustiça que sucedeu a primeira Abolição. Os abomináveis racistas cujos nomes não repetirei seguem construindo uma boa consciência nacional sobre a falsa harmonia racial.
É hora de dizer basta ao genocídio dos jovens negros nas periferias das cidades. Ou a seu empilhamento em um sistema penitenciário que levaria Castro Alves a repetir suas poderosas invectivas: Senhor Deus dos desgraçados, dizei-me Vós, Senhor Deu-se: se é mentira, se é verdade tanto horror perante os Céus?
Talvez seja essa outra consciência que devemos fazer florescer nesses dias de novembro: de que mesmo ante tanto racismo, a luta do povo negro, e de todos nós que clamamos nesta pátria por justiça e liberdade, pouco a pouco fará o Brasil se tornar uma grande e renovada Palmares.