Neste exato momento, uma potência militar utiliza sua ciência, engenharia, capacidade logística e suas conexões geopolíticas para impor a fome a um grupo populacional estrangeiro. Todas essas capacidades poderiam estar sendo colocadas a serviço da humanidade, no entanto, o governo de Israel decide aplicá-las para esfaimar as pessoas na Faixa de Gaza.

Reconhecendo que o conflito israelo-palestino é histórico e que é extensivamente analisado por especialistas, decidimos nos concentrar no atual episódio desta história em que as pessoas mais vulneráveis estão sendo expostas a gravíssimas carestias. São na maioria crianças, parturientes e mulheres grávidas, que clamam por um pouco de água e alimentos.

Sem qualquer participação nos conflitos históricos, esta parcela da população sofre pela briga de gente armada, que deveria abandonar as armas e ser capaz de resolver seus problemas por meios não violentos, com o uso da razão, da mediação e da ponderação.

Não obstante, crianças que deveriam ser protegidas, estão padecendo de fome e, se sobreviverem, poderão ter suas capacidades físicas e cognitivas negativamente afetadas pelo resto da vida. Não apenas pela ausência de nutrição adequada, mas também pelos horrores psicológicos da fome coletiva em um contexto de forte violência armada.

Dados recentemente compilados junto a organizações do sistema ONU demonstram o tamanho da crise: 90% das crianças com menos de dois anos e 95% das mulheres grávidas ou que amamentam estão em situação de pobreza alimentar. Entre crianças com menos de 2 anos, uma em cada seis sofre com desnutrição grave. Mais de 95% da água é considerada imprópria para consumo humano. Dos 2,4 milhões de habitantes de Gaza, 2,2 milhões estão ameaçados de fome grave.

Responsabilização

É seguro dizer que, pelo menos desde o século XX, todas as grandes fomes possuem interferência humana: seja diretamente, por meio da ação ativa; seja pela inação ou pela omissão. Sendo fruto da ação humana, torna-se necessário responsabilizar os perpetradores pelos seus atos. Israel é um Estado membro das Nações Unidas e signatário de diversos tratados de Direitos Humanos, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais. Por esta condição, deve ser responsabilizado perante a comunidade internacional. É inaceitável que crimes contra a humanidade estejam sendo cometidos às claras e sob as barbas de organismos internacionais e das nações mais poderosas do Planeta, sem que nenhum deles seja capaz de dar um basta ao massacre da população não combatente, especialmente das pessoas mais vulneráveis.

Para pensarmos a mobilização política internacional que será necessária para trazer os responsáveis às consequências cabíveis, na medida de seus atos, é útil nos apoiarmos no trabalho do pesquisador David Marcus. Ele nos ajuda a pensar sobre os graus de gravidade da imposição da fome. Seriam quatro, basicamente, do mais fraco para o mais forte: Incompetência, Indiferença, Imprudência e Intenção. Esta ocorre quando existe a decisão política de implementar medidas que tenham como objetivo esfaimar um grupo populacional ou mesmo matá-lo de fome. É a utilização governamental da fome como arma de destruição da vida.

A presente operação militar claramente se enquadra no ponto mais elevado de gravidade. O governo de Israel tem aplicado medidas deliberadas que impedem o acesso às mínimas condições de sobrevivência. Além da destruição física das estruturas necessárias à vida, incluindo plantações e instalações de dessalinização da água, há um bloqueio não apenas ao comércio, mas à ajuda humanitária. Não bastassem os bloqueios, assistimos na semana passada o exército de Israel atirar em pessoas que se aglomeravam para pegar um pouco de comida, causando mais de 100 mortes e deixando mais de 700 feridos. Após as imagens ganharem o mundo, um ministro de Israel disse que a ação do Exército foi “excelente” e defendeu o fim da ajuda a Gaza.

De fato, a imposição da fome está longe de ser uma novidade na história das Relações Internacionais e dos processos de colonização. Mas isso não significa que devamos tolerá-la. Pela sua severidade e exposição midiática, a operação conduzida por Israel tem potencial para se tornar paradigmática no que toca à condenação máxima da imposição da fome às pessoas mais vulneráveis. Uma vigorosa mobilização em torno disso poderá se tornar exemplar se realizada antes de a população palestina atingir o grau máximo de catástrofe alimentar (Famine, Hambruna) de acordo com a classificação da ONU, muito embora alguns efeitos desse tipo já sejam visíveis. Como reportou Jamil Chade em 03 de março, a Unicef apontou que pelo menos dez crianças teriam morrido devido à desidratação e à desnutrição no Hospital Kamal Adwan, no norte da Faixa de Gaza, nos últimos dias. Provavelmente, o número deve ser maior.

Lembremos, aliás, que se morre pela fome não apenas quando não se come absolutamente nada e o organismo entra em colapso, mas também quando a severa má-nutrição torna o corpo vulnerável a doenças simples de serem tratadas, como a diarreia ou gripe.

A fome também mata quando as pessoas tentam fugir dos territórios em que ela se instala e padecem no processo migratório, ou quando se expõem a altos riscos em busca de comida, como foi o caso de aglomerar-se em frente ao exército de Israel.

Mobilização internacional

É imperativo que a comunidade internacional utilize todo o peso diplomático necessário para que a população de Gaza deixe de ser esfaimada. Como diz a nota do Itamaraty, “a cada dia de hesitação, mais inocentes morrerão. A humanidade está falhando com os civis de Gaza”.

O governo brasileiro, que pretende criar uma Aliança Global Contra a Fome, tem feito a sua parte e mostrado coragem para enfrentar o governo de Netanyahu e criticar a ação militar em Gaza, “que não tem qualquer limite ético ou legal”, conforme a nota do Itamaraty.

Em tempo, é preciso deixar claro que não compactuamos com qualquer prática terrorista, inclusive os atentados e sequestros promovidos pelo Hamas. No entanto, a desproporcionalidade da retaliação em Gaza é uma insanidade, e usar a imposição da fome como arma contra crianças é inadmissível. Dos 30 mil mortos em Gaza desde o início do conflito, 12 mil são crianças. O povo judeu não é culpado e o povo palestino também não. Ambos têm o direito de viver em seus Estados, lado a lado. Em paz e sem fome.