A ilegalidade do decreto de garantia da lei e da ordem de Temer
No desespero por mostrar-se firme e resistente, expôs como nunca sua fragilidade e fraqueza em mais um desequilíbrio institucional.
Demonstração de força para conter protestos e escândalos de corrupção
Na semana passada, um escândalo de proporções gigantescas abalou o cenário político nacional, já bastante desequilibrado e instável. Conversa entre o presidente Michel Temer e Joesley Batista, sócio do grupo JBS, foi tornada pública e divulgada para a imprensa. Na conversa, Temer solicitava a Joesley que mantivesse o pagamento de propina semanal de 500 mil reais a Eduardo Cunha para que o deputado hoje preso e afastado se mantivesse calado sobre os esquemas de corrupção do governo e do congresso.
Embora Temer tenha apelado para o argumento da clandestinidade da gravação, o mesmo não teve capacidade de sensibilizar a comunidade jurídica, já que é cediço que a gravação de conversa em que um dos interlocutores foi partícipe é considerada prova lícita, situação distinta da gravação de conversa entre terceiros.
O escândalo expôs a prática de crime comum e crime de responsabilidade do presidente, desencadeando uma crise de governabilidade que tornou insustentável a continuidade do governo Temer. Com isso, o dia 24 de maio foi marcado por manifestações políticas em prol do impeachment de Michel Temer e de eleições diretas imediatas para o cargo de presidente.
Pressionado pela oposição e enfraquecido politicamente, Michel Temer expediu o Decreto de 24 de maio de 2017, autorizando o emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem no Distrito Federal, no período de 24 a 31 de maio de 2017, com o intuito de reprimir os protestos contra seu governo. O ato de Garantia da Lei e da Ordem foi considerado um equivalente ao Atos Institucionais da Ditadura Civil-Militar (1964-1984), mecanismos de legitimação e legalização das ações militares naquele período.
Muitos analistas políticos avaliaram que a ação desesperada do presidente Michel Temer e do Ministro da Defesa Raul Jungmann mostrou não apenas precipitação, mas despreparo para reagir à crise, evidenciando ainda mais a falta de apoio e de capacidade de articulação política do governo que pretendia levar a cabo as reformas à Constituição.
O uso da Garantia da Lei e da Ordem
A primeira vez em que se empregou o uso das Forças Armadas em ações internas de ordem pública foi em 1981, por solicitação de Antônio Carlos Magalhães, então governador da Bahia, ainda durante a ditadura civil-militar, para enfrentamento de grevistas.
Em 1988, as tropas do Exército foram chamadas para reprimir uma greve de funcionários da Companhia Siderúrgica Nacional, resultando na morte de três empregados da empresa, expondo os muitos problemas, inclusive de desvio de finalidade, do uso das Forças Armadas para fins de repressão política.
Na vigência da Constituição Federal de 1988, o então presidente Fernando Henrique Cardoso autorizou o envio de mais de mil soldados do Exército para ocupar a sede da Companhia Vale do Rio Doce, no Pará, levando à prisão de 12 líderes de garimpeiros do chamado Movimento Pela Libertação de Serra Pelada, em 1996. Em setembro de 2000, Fernando Henrique empregou o uso das Forças Armadas para reprimir integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) que ocuparam uma fazenda de propriedade de familiares do próprio FHC, em Minas Gerais. O então governador de Minas Gerais, Itamar Franco, considerou o emprego de tropas federais como uma intervenção federal que teria deflagrado uma situação de anormalidade constitucional [1].
O fim do governo FHC marcou também o fim do uso do instituto da Garantia da Lei e da Ordem para fins de repressão política, uma vez que notoriamente esse uso se distancia da previsão das finalidades institucionais das Forças Armadas, previstas no art. 142 da Constituição Federal. Entretanto, o emprego da Garantia da Lei e da Ordem continuou existindo, a requerimento dos governadores dos estados da federação, quando estes solicitam auxílio da administração federal para fins de combate ao crime organizado, como ocorreu, por exemplo no Rio de Janeiro.
Para evitar o uso abusivo e inadequado das Forças Armadas, criou-se o instituto da Força Nacional de Segurança Pública, acionada em situações de distúrbio público, quando as ações extrapolarem o controle das forças de segurança locais, sendo necessária a aquiescência do governador do estado na sua utilização.
O pedido do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, foi justamente o de uso da Força Nacional para apoiar a Polícia do Distrito Federal. Maia desmentiu a afirmação do Ministro da Defesa Raul Jungmann de que tivesse requerido o uso da Garantia da Lei e da Ordem, instituto de uso excepcional.
Requisitos legais de cabimento da Garantia da Lei e da Ordem
O instituto da Garantia da Lei e da Ordem está previsto no art. 15 da Lei Complementar n. 97 de 1999 e disciplina o art. 142 da Constituição Federal, que dispõe que as Forças Armadas destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem.
Ele configura uma atribuição temporária das Forças Armadas em períodos de normalidade constitucional, nisso se distinguindo do estado de sítio, do estado de defesa e da intervenção federal.
Para ser cabível o instituto da Garantia da Lei e da Ordem, o art. 15 da Lei Complementar n. 97/99 [2] estabelece os seguintes requisitos:
• Iniciativa do presidente da república ou requerimento de quaisquer dos poderes constitucionais;
• Esgotamento dos instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, assim formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional;
• Atuação episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado;
• Definição, pelos órgãos operacionais, de ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das operações na garantia da lei e da ordem.
A ilegalidade do Decreto de Garantia da Lei e da Ordem de 24 de maio de 2017
O Decreto de Garantia da Lei e da Ordem de 24 de maio de 2017 dispõe tão-somente o seguinte:
Art. 1º Fica autorizado o emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem no Distrito Federal, no período de 24 a 31 de maio de 2017.
Parágrafo único. A área de atuação para o emprego a que se refere o caput será definida pelo Ministério da Defesa.
Art. 2º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Como se depreende, o Decreto não cumpre os requisitos dos itens 2, 3 e 4, acima, exigidos respectivamente pelos parágrafos 2º, 3º e 4º do art. 15 da LC 97/99.
• Não houve esgotamento dos instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Como vimos, o parágrafo 3º do mencionado dispositivo determina que haja reconhecimento formal e expresso de que os instrumentos de manutenção da ordem são indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional. Entretanto, não houve tal reconhecimento formal, até porque isso não refletiria a verdade dos fatos, uma vez que as forças policiais não poderiam ser consideradas inexistentes, indisponíveis ou insuficientes.
• Do mesmo modo, apesar do decreto estabelecer atuação por tempo limitado ao período de 24 a 31 de maio, ele se limita a estabelecer que a área de atuação para o emprego será definida pelo Ministério da Defesa, violando a exigência formal de estabelecimento prévio, por meio do próprio decreto, da área em que ocorrerão as operações especiais.
• Tampouco foram definidas pelo decreto as ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das operações na garantia da lei e da ordem.
Desse modo, estão ausentes os requisitos mínimos necessários ao uso do instituto da Garantia da Lei e da Ordem, sendo nulo o Decreto que a instituiu.
Do mesmo modo, para além dos aspectos formais que maculam de nulidade o decreto de Temer, falta-lhe também legitimidade política, uma vez que desvirtua o uso das Forças Armadas para fins de repressão política, a fim de impedir os atos de protesto contra seu governo cambaleante.
Ora, um decreto que descumpre a lei que o disciplina jamais poderia intitular-se ato de garantia da lei. Pode chamar-se, no máximo, de ato de tentativa de preservação da ordem política, que todos sabem ser insustentável.
Na verdade, a DEFESA DA LEI muitas vezes passa por atos de contestação do poder instituído, enquanto a VIOLAÇÃO DA LEI OCORRE EM GABINETES FECHADOS, MEDIANTE ACORDOS ESCUSOS, como os que foram revelados pela gravação das conversas entre Temer e Joesley Batista.
A verdadeira dilapidação do patrimônio público brasileiro não está ocorrendo pelas ações de protesto dos manifestantes, mas sim pelas ações desses que ordenam o uso do aparato militar contra os que legitimamente protestam.
Erguer nossa voz em defesa da LEGALIDADE DEMOCRÁTICA é erguer a voz contra o Ato Ditatorial instituído por Temer e Jungmann.
O governo Temer, mais uma vez, cometeu um ato de desequilíbrio institucional. No desespero por mostrar-se firme e resistente, expôs como nunca sua fragilidade e fraqueza.
Notas:
[1] LOURENÇO, Gilberto Cezar. O papel das forças armadas na atualidade. Disponível em: http://www.esg.br/images/Monografias/2012/LOURENCOG.pdf. Acesso em 24/05/2017.
[2] Art. 15. O emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República, que determinará ao Ministro de Estado da Defesa a ativação de órgãos operacionais, observada a seguinte forma de subordinação:
I – ao Comandante Supremo, por intermédio do Ministro de Estado da Defesa, no caso de Comandos conjuntos, compostos por meios adjudicados pelas Forças Armadas e, quando necessário, por outros órgãos;
II – diretamente ao Ministro de Estado da Defesa, para fim de adestramento, em operações conjuntas, ou por ocasião da participação brasileira em operações de paz;
III – diretamente ao respectivo Comandante da Força, respeitada a direção superior do Ministro de Estado da Defesa, no caso de emprego isolado de meios de uma única Força.
§ 1º Compete ao Presidente da República a decisão do emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados.
§ 2º A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal.
§ 3º Consideram-se esgotados os instrumentos relacionados no art. 144 da Constituição Federal quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional.
§ 4º Na hipótese de emprego nas condições previstas no § 3o deste artigo, após mensagem do Presidente da República, serão ativados os órgãos operacionais das Forças Armadas, que desenvolverão, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, as ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das operações na garantia da lei e da ordem.
§ 5º Determinado o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, caberá à autoridade competente, mediante ato formal, transferir o controle operacional dos órgãos de segurança pública necessários ao desenvolvimento das ações para a autoridade encarregada das operações, a qual deverá constituir um centro de coordenação de operações, composto por representantes dos órgãos públicos sob seu controle operacional ou com interesses afins.
§ 6º Considera-se controle operacional, para fins de aplicação desta Lei Complementar, o poder conferido à autoridade encarregada das operações, para atribuir e coordenar missões ou tarefas específicas a serem desempenhadas por efetivos dos órgãos de segurança pública, obedecidas as suas competências constitucionais ou legais.
§ 7º O emprego e o preparo das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem são considerados atividade militar para fins de aplicação do art. 9o, inciso II, alínea c, do Decreto-Lei no 1.001, de 21 de outubro de 1969 – Código Penal Militar.
§ 7º A atuação do militar nos casos previstos nos arts. 13, 14, 15, 16-A, nos incisos IV e V do art. 17, no inciso III do art. 17-A, nos incisos VI e VII do art. 18, nas atividades de defesa civil a que se refere o art. 16 desta Lei Complementar e no inciso XIV do art. 23 da Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), é considerada atividade militar para os fins do art. 124 da Constituição Federal.