A força do Quilombo do Grotão e o samba de André Jamaica
O Quilombo do Grotão, que fica na periferia de Niterói (RJ), é um local de resistência cultural. Para falar sobre este movimento, conversamos com o músico André Jamaica
Por Eduardo Sá
O Quilombo do Grotão, que fica na periferia de Niterói (RJ), é um local de resistência cultural. Dentre diversas outras atividades, todo mês é realizado um samba de raiz no terreno em meio a floresta localizada no Parque Estadual da Serra da Tiririca. Cerca de 60 pessoas moram no quilombo reconhecido em 2016 pela Fundação Cultural Palmares. A valorização dos saberes e práticas ancestrais estão na base de todo trabalho desenvolvido no local. Para falar sobre este movimento, conversamos com o músico André Jamaica, durante um tributo ao sambista Zé Katimba, que promove há cinco anos o Samba de Fé todo primeiro domingo do mês em homenagem a um orixá da religião africana.
Jamaica é nascido e criado na Baixada Fluminense, estudou na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, em São Gonçalo, e está há anos em Niterói desde quando começou a trabalhar com música na UFF. Já tocou em algumas casas culturais da cidade e com diversos sambistas cariocas. Cantor e compositor, traz em seu trabalho uma reverência às religiões africanas. Segundo ele, o momento político atual de intolerância religiosa não é muito favorável ao samba. Por outro lado, complementou, as raízes deste gênero musical já estão fincadas na cultura popular e tem tudo para se perpetuar através das próximas gerações.
Na capital carioca temos a famosa Pedra do Sal, qual a diferença de tocar num quilombo?
A importância de fazer um samba aqui é poder juntar e verdadeiramente fazer parte desta diáspora africana, que é muito importante aqui no Brasil. Somos um país extremamente africano, fundado tanto economicamente quanto culturalmente, então quando a gente faz um samba nesse quilombo partilhamos de toda essa diáspora, todo esse conhecimento e legado, toda essa proposta que a cultura africana trouxe ao Brasil.
Qual sua avaliação sobre o samba atual?
O samba se estabeleceu de uma forma definitiva. As redes sociais são contributivas nesse sentido, porque ajudam a ramificá-lo de uma maneira mais abrangente e rápida. Vivemos a informação do tempo real, e o samba toma partido e tira proveito disso no melhor sentido da palavra. Ele sempre esteve aí, mesmo no período da década de 70 com essa coisa da música da discoteca e americana. É justamente nessa época que Beth Carvalho vendeu muitos discos, por exemplo, assim como Clara Nunes, João Nogueira e muitos outros. Então, o samba sempre esteve bem firme ali fincado.
E você atribui isso a quê?
Porque o samba é muito verdadeiro. Ele tem uma tradição que vem muito do candomblé, que é essa coisa de respeito aos mais velhos e às raízes. Respeito de onde você vem, uma coisa muito familiar, é diretamente ligado ao candomblé e a umbanda. Cada terreiro que se estabeleceu ou se estabelece, de uma forma direta o samba também está neste contexto. Nunca perdemos esse foco e é bom ver hoje o samba tão abrangente, que ele chega a todo mundo: quem tem grana e não tem.
Falando em religiosidade, vivemos uma fase de expressiva ascensão das religiões evangélicas. Como funciona isso neste cenário, inclusive de intolerância religiosa?
O samba já foi oficialmente proibido no Rio de Janeiro. No início o João da Baiana, que é uma referência, dizia o seguinte: samba é macumba com letra profana. Ou seja, são os ritmos da macumba, do candomblé, da umbanda com letras que falam do amor, do dia a dia, do cotidiano ou outras coisas que não as religiosas. Nesse momento que a gente vive de muita intolerância religiosa, o samba é um componente agregador da religião de matriz africana, não tem como separar uma coisa da outra. Na medida em que o samba vem disso, todo reduto deste gênero musical acaba se tornando um quilombo urbano. Se a gente entender que quilombos são locais de resistência, qualquer lugar proponha samba é também um quilombo urbano. Por isso, essa relação hoje é muito forte do samba com as religiões afros.
Quando você fala dessa relação, de certa forma associamos a questão da negritude também. O samba embranqueceu ou perdeu qualidade nos últimos anos?
Sou agregador por natureza, quando falamos em embranquecimento talvez tenhamos no sentido da frequência das pessoas, o público que participa. Acho que essa galera vem se chegando e entendendo. Vejo algumas pessoas, como o Lucio Sanfilippo, que é branco mas referência nesse samba ligado às religiões de matriz africana. Temos uma compositora maravilhosa que é a Manu da Cuíca, uma das compositoras do samba vencedor da Mangueira, que é branca e soma junto. Temos um Luiz Antônio Simas, que é um historiador fantástico e também compositor com um trabalho belíssimo sobre as religiões de matriz africana. Temos a Stela Guedes também, uma escritora que trabalha muito nesse sentido, então a palavra embranquecimento talvez tenha um cunho pejorativo. Eu chamaria de uma abrangência da diáspora africana, que está conseguindo chegar a lugares que antes não conseguia.
Dialogando ainda com os intérpretes do Brasil, como Gilberto Freire, ainda dentro do processo de miscigenação nacional?
Com certeza ainda faz parte, a miscigenação é fundamental neste sentido e contribui bastante. É uma soma de forças.
Um samba mais de raiz e de quilombo enfrenta maior dificuldade para ter visibilidade?
A música não deixa de ser uma mercadoria, muita gente vê o samba como um produto. Existem formas de se fazer o samba que são mais palatáveis ao mercado, com uma melodia fácil, refrão e letra que pegam na cabeça, porque isso vende no mercado. É difícil fazer o samba de raiz, porque é com outra proposta melódica e poética. Existe essa diferença, porque a linguagem do mercado é mais acessível. A gente procura trabalhar algo que valorize os mestres Cartola, Candeia, Noel Rosa, essa galera que fazia com uma proposta de fazer o melhor samba possível.
E o que marcou essa mudança de vendas de milhares de discos e aparições frequentes na TV pro que o samba é hoje na nova geração?
Mudou com a rede social, ela é muito relacionada à modernidade que as vezes é diretamente e equivocadamente relacionada a jovialidade. As pessoas acham que o que é moderno precisa ser jovem, precisa ter esse rosto jovial. Por isso alguns compositores ou sambistas que têm já muita vivencia e são mais maduros, como Zé Katimba, Monarco ou como era Dona Ivone, talvez fiquem fora da mídia porque não tem essa capa e invólucro jovial. O samba continua sendo a referência rítmica do Brasil, lá fora você fala que é brasileiro e as pessoas te associam diretamente a samba e futebol. O que talvez tenha mudado é que essa imagem que o mercado gosta de levar para fora é a desse samba mais jovial, que está ligada aos cantores mais jovens.
Fala um pouco mais do trabalho desenvolvido aqui no Quilombo do Grotão.
Há dez anos realizamos aqui esse movimento cultural no quilombo, enfrentamos muitas dificuldades para obter o registro definitivo de território por estarmos dentro do Parque Estadual da Serra da Tiririca. Mas já existe há bastante tempo, é da família do Renatão que é o responsável. O sítio se chama Manoel Bonfim, o avô dele, que herdou essa terra após trabalhar para um senhor dono de muitas terras na região. O Grotão está há bastante tempo aqui como resistência e polo cultural, divulgando a diáspora, tem roda de capoeira, já fez jongo e continua mantendo a roda de samba há muito tempo. Se tornou uma referência de resistência não só em Niterói como no Rio.
Tem também muitos produtos de ervas medicinais, culinária e artesanatos e pinturas a venda para o público, né?
Não é só o samba em si, o quilombo envolve essas outras questões como o artesanato ligado a essa temática. Os doces de coco, cocada, de origem africada, quindim, que tem muito a ver com a África e Portugal. Envolve roupas, há pouco tempo tinha um rapaz do Senegal que vendia camisas da sua terra natal. O quilombo faz questão de manter isso, não só a música e culinária mas que tudo seja de alguma maneira ligada à questão africana ou a sustentabilidade. Toda a estrutura do quilombo é feita para interagir com o ambiente, tudo de madeira e muita planta.
Tem algo que não tenha sido citado que você acha importante ressaltar?
O mais importante é a gente conseguir falar. Vivemos um momento político no país muito delicado, precisamos ter muita atenção com todas essa questões e somar forças.