Por Lívia Brandão

Em meio aos conflitos armados que assolam o mundo, a fome deliberadamente utilizada como instrumento de guerra emerge como uma das mais cruéis estratégias de dominação. Esta prática ignora os princípios básicos do Direito Internacional Humanitário, especialmente consagrados na Quarta Convenção de Genebra e no direito humanitário internacional consuetudinário, que visam proteger civis em tempos de guerra. Ao privar propositadamente populações civis de acesso a alimentos e recursos essenciais, os agentes envolvidos no conflito não apenas comprometem a segurança alimentar, mas também violam os direitos humanos fundamentais dos mais vulneráveis.

Essa estratégia desumana é recorrente há séculos, como ocorreu durante o Cerco de Jerusalém na Primeira Guerra Judia-Romana em 70 d.C., em que o exército romano isolou a cidade, levando ao rápido esgotamento dos suprimentos de alimentos. Isso resultou em graves consequências, como o acúmulo de corpos nas ruas e surtos de doenças devido à decomposição. A falta de comida levou os habitantes a extremos, consumindo couro, folhas e até recorrendo ao canibalismo, conforme documentado pelo historiador Flávio Josefo. Essa situação levou à deterioração das defesas e permitiu que os romanos rompessem as proteções da cidade, resultando na devastação de locais sagrados como o Segundo Templo e no massacre dos sobreviventes. O Cerco de Jerusalém também foi um catalisador para a Diáspora Judaica e provocou mudanças significativas nas práticas religiosas do judaísmo.

Quase 2000 anos depois, a fome ainda é usada como arma de guerra. Porém, no contexto atual, os atores se invertem, sendo o governo judaico o usufruidor desse mecanismo desumano.

Foto: Rafah, Faixa de Gaza Fatima Shbair/ AP Photo

As autoridades israelenses impuseram punições coletivas à população civil de Gaza, privando-a de itens básicos e utilizando a fome como arma de guerra, de acordo com a Oxfam e a Human Rights Watch. Essas ações constituem graves violações da Quarta Convenção de Genebra e do direito humanitário internacional consuetudinário.

A Classificação Integrada de Fases de Segurança Alimentar (IPC) publicou uma análise que concluía que metade de Gaza, cerca de 1,1 milhão de pessoas, passavam por insegurança alimentar. Essa situação é resultado, para além da guerra decorrente, também do descumprimento do governo israelense sobre suas responsabilidades de proteção ao povo palestino, dificultando a acessibilidade de ajuda humanitária na região. Práticas como o arrasamento de terras e a privação de insumos essenciais também agravam a crise.

Os abastecimentos de água e alimentos para a população só podem chegar em Gaza através de Israel, que está bloqueando a passagem. De acordo com a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), as autoridades israelenses vetaram pelo menos 27 das 81 missões de ajuda que requeriam coordenação no norte e no sul da Faixa de Gaza. Israel tem negado consistentemente comboios de ajuda ao norte de Gaza, onde a escassez de alimentos é mais grave devido à concentração da ofensiva militar israelense nos primeiros dias da guerra. A situação está chegando a um ponto tão insustentável que outros países estão fazendo a entrega de suprimentos por meio de lançamentos aéreos.

Com isso, é fato que a história da humanidade é manchada por uma crueldade e uma violação dos direitos humanos persistente. O Cerco de Jerusalém não foi a primeira vez que a fome foi usada como arma de guerra e, infelizmente, a Crise em Gaza não será a última.