A festa de Belém e o segredo que não se traduz em tratados
Se o sentimento é de que nunca mais haverá uma COP como a de Belém, talvez seja porque aqui a conferência teve gosto de rua, de participação popular, de futuro desejado em voz alta.
Por Igor Travassos*
Não é novidade para ninguém o movimento daqueles que veem na festa uma engrenagem importante para a mobilização política. Na verdade, negligenciar a cultura sempre foi parte substancial dos projetos autoritários que tentam aniquilar a participação social e a identidade do seu povo para manter o controle. Recentemente, ouvi de uma amiga que o caos à brasileira, ou aquele nosso jeitinho, é o que, de certo modo, impediu a extrema direita de permanecer mais tempo no poder. Nosso frevo é imprevisível, incontrolável, difícil de explicar pra gringo.
Talvez eles tenham sentido um pouco disso em Belém, durante a COP. Mas não da forma como quiseram que acreditassem, alimentados por desinformação e por uma campanha difamatória que torcia contra a realização da principal conferência de clima do mundo em uma cidade real, no sul global, com os desafios que cidades reais do sul global enfrentam. Se o saneamento, a hospedagem e o transporte são deficitários, que vejam exatamente aquilo que as pessoas vivem todos os dias. Se o calor incomodou as negociações internacionais, imagina estudar numa escola pública na periferia desta cidade ou de tantas outras pelo mundo.
Mas o calor que muitos sentiram foi outro: o do tucupi com jambú no tacacá. Da gastronomia, aliás, a última coisa que podem dizer é que faltou comida em Belém. Qual peixe você quer? Quer açaí com que? Camarão? Caranguejo? Charque? Sem falar nas dezenas de frutas e nos sabores de sorvete da Cairú. Eu, pernambucano que sou, tenho que dobrar a língua para falar da gastronomia paraense, e estou longe de ter provado tudo o que essa cidade, e ainda mais esse estado, pode oferecer.
Entre as muitas mensagens que movimentaram a Beer Zone, três grupos lotados no WhatsApp com festas, programações culturais ou simplesmente “onde é hoje?”, os encontros marcaram a COP30. Na verdade, marcaram Belém. A COP foi apenas o “fica, vai ter bolo”. A cidade estava recheada de gente que veio não só para negociar, mas para a Cúpula dos Povos, o Espaço Chico Mendes, a Aldeia COP e tantos outros espaços paralelos, porém complementares. Se o sentimento é de que nunca mais haverá uma COP como a de Belém, talvez seja porque aqui a conferência teve gosto de rua, de participação popular, de futuro desejado em voz alta.
Em todos esses espaços, a cultura esteve presente, não apenas em manifestações artísticas, mas enquanto identidade: um cocar, um turbante, um pé descalço, um fio de conta, qualquer símbolo que representasse quem o carregava. Sem julgamento, com liberdade para ser quem é, para dançar, cantar, falar, gritar. Até mesmo uma criança da periferia brasileira, que teve que falar sem microfone em um espaço institucional para ser ouvida, mas que entre os seus teve o grito ecoado e agora vê seus direitos expressos nos textos oficiais.
Como uma festa que termina cedo e deixa gosto de quero mais, o texto da COP também teve esse sabor. Não que alguém aguentasse mais dias tentando convencer países ricos a se responsabilizarem e se comprometerem com mudanças reais, mas todos queriam sair com a sensação de que valeu a pena. E valeu. Avanços importantes aconteceram: pessoas afrodescendentes foram citadas no texto final, e essa história de dois mapas do caminho parece promissora. Vamos ver.
No fim das contas, o ponto é simples: brasileiro é carnaval. Não dá para desassociar cultura da nossa identidade. É carimbó, brega, aparelhagem encontrando ecos de resistência na Marcha, é o espírito do mutirão pelo clima levando a juventude ao protagonismo como o Crocodilo no Ver-o-Rio ou o Carabao e o Lendário Rubi no Palácio dos Bares. É a Casa Ninja Amazônia, com noites apertadas e inesquecíveis, recebendo no mesmo palco artistas e ministros e mostrando que cultura e política caminham juntas.
Se não há um caminho hoje para defender o clima que não passe pela cultura, é justamente na feira do açaí, com carregadores, cestas e o fruto roxo na madrugada, que a vida pulsa. No jenipapo, nas penas, nos cantos e nos olhares de quem enxerga por multidões de caules e raízes, o chão de Belém se fez encantado.
E talvez seja isso que o autoritarismo nunca entenda: festa não é fuga. Festa é força. Cultura é política. E é por isso que não tem saída para a crise do clima sem ela.
—
Igor Travassos é comunicador e cineasta, atua com organizações da sociedade civil para enfrentamento ao racismo ambiental e às desigualdades. É defensor da cultura popular e do carnaval de Olinda.