A falta de dignidade para os trabalhadores da gastronomia
O profissional da cozinha também tem direito ao descanso e a um ambiente que respeite sua integridade física e mental
Por Vanessa Santos e Gustavo Guterman, publicado originalmente no blog Comida RJ-CE
Imagine-se chegando para trabalhar nas primeiras horas do dia, com o corpo ainda dolorido de ontem – e, na verdade, de todos os dias anteriores. Ontem foi sua folga. Em teoria, um dia para descansar, mas você passou a maior parte do tempo resolvendo pendências que a rotina não permite. Contas vencendo, reparos na casa atrasados, uma lista interminável de tarefas domésticas que se acumulam porque o tempo é sempre curto demais. Parece que você nunca saiu da cozinha. Já está de volta, atravessando a cidade inteira para chegar ao trabalho, onde o calor e o barulho da cozinha vão dominar as próximas horas. Coloca o dólmã, amarra o avental na cintura e dá o nó da bandana na nuca. O som da coifa, intenso como a turbina de um avião que nunca desliga. Nos primeiros dias, esse som era ensurdecedor, vibrando na cabeça. Com o passar dos anos, ele se transforma em um zumbido de fundo, apenas mais uma peça do cenário em que você está imerso. Logo mais, será impossível lembrar esse ruído – até o fim do turno, quando o silêncio finalmente se revela.
Desde o início da manhã, você está de pé, desviando dos colegas em corredores estreitos, cortando, fatiando, picando ingredientes com pressa, sem espaço para pausas. O calor dos fornos e fogões já domina o ambiente, fazendo da cozinha uma verdadeira fornalha. Gritos de “queima!” e “frente!” ecoam por toda parte. Você respira fundo, tentando entrar no ritmo. E o restaurante ainda nem abriu.
À medida que as horas avançam, o cansaço aumenta e o estômago começa a reclamar. Mas parar para comer é um luxo, algo raro. Se tiver sorte, você rouba alguns minutos, encontra um canto no chão para sentar, apressado, e morde qualquer coisa à mão, sem realmente saborear. Em algum momento, o restaurante abre. “SALÃO ABERTO”, alguém avisa, e isso muda tudo. A cozinha fica um pouco mais silenciosa; por alguns segundos, a coifa ruge mais alto, engolindo a fumaça e parte do calor. O barulho da impressora rompe aquele breve silêncio e não dá trégua – os pedidos não param. A cada “MARCHA” gritada, você mergulha em uma sequência de pratos que exigem atenção, precisão e agilidade. O tempo voa, e qualquer erro ou atraso pode significar uma bronca, uma correção rápida, uma pressão que pesa nos ombros e na mente. Às vezes, você pensa nos filhos, nas horas que passa longe, na casa que só vê para dormir. Sente o peso das contas, as dívidas que nunca param de crescer. Uma pontada aguda na coluna faz você se encolher por um momento – uma dor que não passa e só piora com as horas em pé. Apesar do cansaço, o sono chega sempre nas horas erradas; quando seria hora de dormir, o tempo não permite, e quando finalmente se deita, o corpo já está tão exausto que dormir se torna um desafio. Litros de café ajudam a manter-se em pé, até que a cafeína deixa de fazer efeito. De repente, você percebe que passou mais um dia sem beber um copo de água.
Em algum momento, quando a comandeira está vazia e todos os pratos saíram, surge uma brecha. Você se apressa para escapar por alguns minutos, corre lá fora para fumar um cigarro. Mas não é apenas o cigarro – é o que ele representa: cinco minutos de paz, um momento para respirar, um símbolo universal na cozinha de que você merece uma pausa. Até quem não fuma entende esse momento. Na cozinha, o vício do cigarro não vem só da nicotina, mas da exaustão. Cada tragada é uma pequena fuga, um tempo roubado da correria, um breve momento de paz controlada. Você corre para o banheiro, lava as mãos, joga água no rosto. Não há tempo para mais nada; a impressora já começa a cuspir mais comandas.
Durante o serviço, seu olhar se desvia para o salão por um instante. Lá, as pessoas estão sentadas, no ar condicionado, conversando, comendo com calma. Saboreiam os pratos que você ajudou a criar, mas que parecem pertencer a outra realidade. Do outro lado do balcão, o tempo passa devagar. A comida que você prepara com pressa é degustada com tranquilidade – uma calma que nunca é sua. Eles, do outro lado, celebram cada garfada. No final do turno, cortes e queimaduras se acumulam nas mãos e nos braços, e o corpo pulsa de exaustão. Quando finalmente deita, o som da cozinha ainda ecoa na mente. O sono é leve e entrecortado, e amanhã, o ciclo recomeça. Até a próxima folga, são seis dias que parecem uma eternidade para quem vive essa rotina, mas que, a cada minuto, são dedicados a proporcionar uma experiência que só os outros desfrutam.
DIGNIDADE
Dignidade é o valor absoluto que habita em cada ser humano. É o que nos torna únicos, preciosos e insubstituíveis. É o direito inalienável de sermos tratados com respeito, de termos a liberdade de escolher nossos caminhos e a garantia de que nossas vidas importam em sua essência e complexidade. Dignidade é o alicerce da existência humana, o que dá sentido aos direitos e à justiça; é o que nos lembra de que ninguém deve ser visto apenas como um meio, mas como um fim em si mesmo, com valor e propósito próprio. O direito de ser visto, ouvido e valorizado em sua essência, não como um simples instrumento, mas como um ser merecedor de respeito e reconhecimento por tudo o que entrega ao mundo.
Para o cozinheiro, dignidade é mais do que respeito; é a conquista de condições que permitam o equilíbrio entre trabalho e vida, saúde e profissão, esforço e valorização. É ser tratado como um ser humano integral, que, embora dedique sua arte e energia ao prazer do outro, também precisa de reconhecimento, descanso e de um ambiente que respeite sua integridade física e mental. Ele deve ser visto não apenas como alguém que realiza os sonhos alheios, mas como alguém que merece uma vida plena, honrada e digna.
Ser cozinheiro(a) exige não apenas habilidades técnicas. São profissionais que dedicam suas vidas a preparar alimentos para milhares de pessoas, mas que muitas vezes enfrentam uma realidade de dificuldades e sacrifícios que passam despercebidos pela sociedade. A rotina dos cozinheiros(as) é marcada por um regime de trabalho exaustivo e desumano, conhecido como escala 6×1, em que se trabalha seis dias consecutivos com apenas um dia de descanso. Essa jornada insustentável tem efeitos graves e muitas vezes irreversíveis sobre a saúde física e mental dos profissionais. Essa realidade também é vista em outros setores de serviços no país e reduz o tempo que eles têm para estar com suas famílias.
No plano mental, as consequências são devastadoras. A pressão constante e a falta de descanso adequado contribuem para o desenvolvimento de condições como ansiedade, depressão e esgotamento. O índice de burnout no Brasil é alarmante, com o país em segundo lugar no ranking mundial de incidência dessa síndrome, amplamente agravada pela escala 6×1. A exaustão e a falta de pausas regulares causam um desgaste emocional que impacta diretamente a vida pessoal e social dos profissionais. Cozinheiros(as) passam horas em pé, sob pressão para manter a produtividade em ritmo acelerado, manuseando ferramentas pesadas e cortantes. A repetição contínua desses movimentos resulta em lesões por esforço repetitivo, dores crônicas, fadiga extrema e exaustão física, que muitas vezes deixam sequelas permanentes.
O fenômeno de falta de profissionais em um mercado com tantas vagas abertas é sintomático. Empresários frequentemente reclamam da escassez de garçons e cozinheiros, o que impacta diretamente os faturamentos do setor.
EFEITOS
A depressão, uma doença silenciosa, tem acompanhado historicamente a gastronomia profissional. A profissão está entre as vinte com os índices mais altos de suicídio. Casos trágicos de suicídio entre chefs renomados e cozinheiros(as) são exemplos do impacto psicológico dessa realidade. Benoît Violier, chef de um restaurante de três estrelas Michelin na Suíça, tirou a própria vida em 2016, e Bernard Loiseau, chef francês, fez o mesmo em 2003, ambos sob a pressão do ambiente de trabalho. O estresse excessivo e a falta de apoio agravam a situação.
Dados no Brasil sobre as condições de trabalho dos profissionais da gastronomia ainda são escassos. Nos Estados Unidos, o governo revela números alarmantes: a profissão de cozinheiro ocupa a quinta posição entre as mais propensas ao alcoolismo e lidera no índice de usuários de drogas. Muitos buscam refúgio em substâncias, como o chef Anthony Bourdain, que em sua biografia relatou o uso de drogas como uma forma de aliviar a carga emocional da rotina. Além da pressão interna, as avaliações online e programas de TV que romantizam o ambiente de cozinha como uma “zona de guerra” exacerbam as expectativas e a pressão.
Apesar da falta de dados consolidados sobre tal realidade, os relatos sobre os impactos da profissão na saúde dos cozinheiros profissionais multiplicam-se. Casos como o de Geovana Lopes, de 27 anos, evidenciam a grave crise de saúde mental que permeia a profissão. Trabalhando na escala 6×1, Geovana desenvolveu transtorno bipolar, ansiedade generalizada, síndrome do estresse pós-traumático e depressão. O estigma associado à busca por ajuda, aliado à cultura de sacrifício, faz com que esse sofrimento permaneça invisível. Além disso, os profissionais frequentemente abdicam de momentos pessoais importantes, como feriados e eventos familiares, devido à alta demanda do setor. Jornadas prolongadas e horas extras são comuns e raramente remuneradas, em uma carreira cujo salário médio, em torno de R$ 1.760, está longe de compensar as ausências e a pressão constante.
A trajetória da gastronomia não deveria ser definida apenas pelo sacrifício, mas também pela resistência e pela paixão que sustentam cada turno. No entanto, para que essa paixão possa florescer sem custos desumanos, é imperativo que o ambiente de trabalho respeite e valorize a dignidade de seus profissionais. Nenhum trabalho deve prosperar à custa da ausência de regulamentações que transformem a permanência de seus trabalhadores em uma prova constante de resistência física e psicológica. Para que a paixão dos cozinheiros(as) possa florescer sem custos desumanos, é fundamental que o ambiente de trabalho valorize e respeite aqueles que o sustentam.
Na próxima parte deste especial, vamos explorar o movimento por transformações que começa a ganhar força. Analisaremos como iniciativas como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) e o movimento Vida Além do Trabalho (VAT) buscam romper com o ciclo da escala 6×1 e propor uma regulamentação mais abrangente para a profissão. Vamos refletir sobre a importância de cozinhar não apenas como um ato de amor, mas como uma prática reconhecida, regulamentada e honrada.
Convido você a seguir conosco e refletir sobre como a gastronomia pode – e deve – ser uma profissão em que respeito, dignidade e paixão caminhem lado a lado.
**Este texto faz parte da série especial “A Dignidade,” em que o professor Gustavo Guterman discute a necessidade urgente de regulamentação e de condições de trabalho justas para cozinheiros(as), com base em exemplos internacionais que demonstram o impacto positivo da regulamentação. Na série, trataremos da regulamentação como um caminho para que cozinheiros(as) tenham seus direitos garantidos e sua saúde e bem-estar preservados, protegendo esses profissionais de condições insalubres e jornadas excessivas.
SOBRE OS AUTORES
” Juntando o nosso tempo de trabalho dedicado à Gastronomia dá 45 anos! Cozinha, gestão, coordenação de cursos, sala de aula, fóruns, congressos, textos, blog, e muita, muita dedicação pela Gastronomia. Por ela, para ela, por respeito a todos que fazem parte, tentamos juntar a experiência dos dois para contribuir com a profissão que garante que as pessoas comam, que garante saúde, alegrias e sentimentos. – Vanessa Santos e Gustavo Guterman, professores de gastronomia e produtores de conteúdo no blog Comida RJ-CE.