A esquerda nunca soube pra que serve a comunicação, que sempre negligenciou
Sem um ecossistema saudável, capaz de distinguir comunicação pública de comunicação estatal não haverá uma democracia de fato neste país.
Quando muito, faz dela certo uso instrumental, não mais que pontual, como um apêndice de tudo o mais. Com a ilusão, talvez, de que os atos e os fatos falam por si.
Não falam. Porque os atos, no campo da política (não só a partidária) ou dos ativismos em geral, têm outro foco e outro papel; e os fatos, ora ora: quem conta um conto, aumenta (ou subtrai) um ponto –que o diga o contexto atual, na selvageria da mídia corporativista que se vive no Brasil.
Tive chance de falar sobre isso no ano passado, no Encontro Nacional de Comunicação da CUT. E peço licença aos que já me ouviram lá pra repetir uma provocação que ajuda a entender o que pretendo dizer. Quantos aqui são capazes de apontar um marqueteiro de esquerda? Um único, que seja. Que tenha feito mais que uma campanha numa capital e tenha alguma projeção nacional. Ou alguém acha que o dedo-duro João Santana é (ou era…) um marqueteiro de esquerda?
Marqueteiro, em essência, não tem ideologia. Vende a mãe à prestação, se for preciso, pra ganhar uma eleição –-e, claro, uma bolada aqui, outra acolá. Trabalha para um partido no almoço e pro seu oponente na janta. E negocia as informações que esconde numa campanha com a outra.
Desde Carlito Maia (“o homem/o mito” da campanha de Lula em 89, criador do slogan Lula Lá), o PT foi refém de marqueteiros sem qualquer compromisso com o campo progressista. Inclusive pela falta de mão de obra especializada nessa seara. Mas não adianta, também, olhar para a comunicação de campanha em campanha.
A esquerda adora falar em “quadros do partido”. Mas tem manifestado uma dificuldade crônica em formar pessoas para esta área.
Em parte, talvez, por uma visão excessivamente pragmática, que parte da ideia de que comunicação é algo que se compra numa gôndola no supermercado –não mais que uma forminha de bolo, pra dar forma “ao que de fato importa”.
As grandes agências de comunicação do país, que cuidam da imagem e estratégia de governos e governantes, atendem a direita e a esquerda. As agências de publicidade são praticamente as mesmas aqui e acolá. Os especialistas em marketing digital flanam de um canto a outro com desenvoltura. E eu falo aqui de gente muito competente, é preciso reconhecer. Mas sem compromisso com qualquer “causa” que não seja o próprio bolso.
Seria apenas um detalhe, se o que se vive hoje não fosse uma guerra de comunicação –essa disputa de narrativas que noveliza o noticiário pra incidir sobre a opinião pública, criminalizando uns e absolvendo outros.
A tragicomédia de erros da esquerda nesse universo se reflete na absoluta falta de entendimento da importância de que se invista em políticas de comunicação. Os secretários ou ministros de comunicação dos governos, nas três esferas do Executivo, não são mais que despachantes de verba de mídia. Vivem de negociar o silêncio e a construção da boa imagem do governo ou do governante com as grandes corporações de comunicação, que achacam de um lado para colher de outro. Não pensam estrategicamente. Não fazem política pública.
Sem uma estratégia de comunicação consistente e consequente, pensada como política pública, que vá além das demandas circunstanciais do governo de plantão, o jogo de forças dificilmente será reequilibrado.
Sem um ecossistema saudável, capaz de fazer valer a Constituição, de distinguir comunicação pública de comunicação estatal e de assegurar contrapartidas sociais das emissoras privadas pela exploração de concessões públicas, não haverá uma democracia de fato neste país.
O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação dá sua contribuição para este debate de 26 a 28 de maio, no 3º Encontro Nacional pela Democratização da Comunicação, que vai reunir centenas de profissionais de todas as áreas na Universidade de Brasília.
É alentador notar que profissionais de outros campos do conhecimento (da educação, psicologia, engenharia etc) estejam engajados nessa reflexão. O FNDC tem cerca de 500 entidades associadas –15% delas, de âmbito nacional. A maioria sem atuação direta no negócio da comunicação. A edição anterior do ENDC, em 2015 em Belo Horizonte, reuniu mais de 700 pessoas de todas as regiões do país.
Num momento em que o campo progressista se reaglutina em torno de uma pauta comum e recupera a capacidade de levar milhões de pessoas para as ruas, é preciso amplificar o debate da comunicação como política pública.
A falta de percepção do cidadão médio de como a comunicação interfere na sua percepção e na sua visão de mundo é alarmante. E mesmo entre pessoas de ímpeto questionador, mais engajadas e esclarecidas, este é um tema difuso, que ainda não entrou no radar.
Que o digam as manifestações contra o golpe e, em seguida, a reação à tentativa do governo temerário de demolir a cultura em linha reta, acabando com o MinC. Símbolo de resistência, o meio cultural ocupou equipamentos culturais por todo o país. Mas quantos cartazes e quantas vozes se levantaram, nas redes, nas ruas ou nas ocupações, contra o desmonte do Ministério das Comunicações, na sua fusão com o Ciência e Tecnologia?
A proliferação de cartazes com o slogan “Globo golpista” ou o “Fora Temer” com o logo da emissora dos Marinho aplicado sobre a letra “o” são indicadores do incômodo das pessoas com o manejo dos meios de comunicação para assegurar os interesses das elites. Mas isso, por si, é perto de nada.
Qual o debate que nasceu disso? Qual a política pública (mesmo em estados governados por partidos de esquerda, como Minas Gerais, a Bahia e o Maranhão) capaz de reduzir a assimetria que se tem e criar um ecossistema de comunicação mais saudável, que prestigie blogs e sites, dissemine os Canais da Cidadania (TVs municipais, no sinal aberto, ao lado da Globo, da Record e etc, que cada cidade do país tem direito der ter) ou fortaleçam emissoras educativas e culturais, universitárias e comunitárias?
Depois de sair dos escombros, o campo progressista precisa espanar a poeira. E vai precisar olhar a comunicação de outra maneira. Nem que seja por instinto de sobrevivência.