A discussão sobre o racismo estrutural não pode ficar restrita a três meses
Precisamos urgente de um novo projeto de futuro e de Brasil: refundar a sociedade em outras bases, menos injustas, violentas e reprodutoras das violências históricas e abjetas
Das chochas dessa História escandalosa
Eu me levanto
Acima de um passado que está enraizado na dor
Eu me levanto
Eu sou um oceano negro, vasto e irriquieto,
Indo e vindo contra as marés, eu me levanto.
Deixando para trás noites de terror e medo
Eu me levanto
Em uma madrugada que é maravilhosamente clara
Eu me levanto
Trazendo os dons que meus ancestrais deram,
Eu sou o sonho e as esperanças dos escravos.
Eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto!
(Maya Angelou)
Novembro chegou ao final e com ele o “Novembro Negro”, mês de celebração do Dia da Consciência Negra e de muitas manifestações de combate ao racismo estrutural presente na sociedade brasileira, consequência dos mais de três séculos de escravização do povo sequestrado em África, nos seus diversos reinos e sociedades, nos meados do século XVI.
Durante esse mês, para além da escrita de artigos e da participação em atividades, organizei-me para focar mais ainda na leitura de textos sobre o tema, com autores e autoras negras(os). Importante dizer que avançamos muito (aquém do deveríamos, dada a capacidade do povo negro e da sua experiência) na produção de conhecimento sobre nós e o mundo, coisa que historicamente fizemos nas sociedades africanas antes da investida europeia.
Mas voltando ao artigo em questão, uma modesta contribuição na atenção que devemos empregar na lembrança constante de que um mês não nos dá, de forma alguma, a real possibilidade de externar toda nossa potência, mas que sim é uma grande conquista, sabemos o quanto chegar até aqui e reverenciar a figura de Zumbi dos Palmares em seu aniversário de morte, Dandara e todas as outras grandes e importantes personagens da nossa história negra foi difícil.
Memória dos Palmares e do Brasil na luta e resistência, com um feriado que agora, no apagar das luzes de Novembro, foi aprovado no Congresso para tornar-se nacional. A data que simboliza a importância e urgência da visibilização da negritude e sua condição em sociedade no Brasil é sim um grande marco. Mas precisamos avançar para debate, reflexão e ação constantes.
O racismo como sistema de poder serve ao capital de forma eficaz ainda hoje, expressando elementos da colonialidade no cotidiano das pessoas negras no Brasil e no mundo. Por aqui, segundo Ynaê Lopes dos Santos, a opinião por vezes eclipsa a verdade. Todo mundo conhece alguém racista, mas ninguém é racista: “não queremos gente ‘mal encarada’ e esquisita sendo modelo de nossa marca de roupas”, diz a gerente de marketing de famosa marca de roupas, acessórios e calçados do Sul do Brasil, ao ser indicado um grupo de modelos negras para promover a marca.
O Banco do Brasil ofereceu um pedido de desculpas por financiar o tráfico negreiro. Não, não é mais tempo de pedir desculpas. É tempo de reparar! Há uma urgência histórica nisso. Os números dos institutos de pesquisa se avolumam e dão conta de que a afirmação de Abdias do Nascimento sobre as circunstâncias que o levaram a definir no “Genocídio do Negro Brasileiro: processo de um racismo mascarado” é uma produção da morte da população negra no Brasil. Hoje, acompanhamos a produção de tantos e tantas outras(os) intelectuais importantes, como por exemplo, Achille Mbembe, que nos mostra como as formas atuais e contemporâneas de deixar morrer e fazer matar, que subjugam a população negra e reconfiguram profundamente as relações entre resistência , sacrifício e terror, produzem uma sociedade, a meu ver, quase insustentável para a população negra, caso não se acelerem os mecanismos de reparação e revisão das condições de vida da população negra, sobretudo das juventudes e das mulheres negras.
O último censo demográfico do IBGE nos apresenta um Brasil mais feminino e mais velho. Isso me intrigou profundamente. Seriam as pessoas negras as mais violadas no quesito direitos humanos no mundo? Neste mês, dezembro, comemoram-se os 75 anos da Carta de Declaração dos Direitos Humanos, pacto entre as nações para que não se reproduzam as atrocidades cometidas e que deixaram marcas indeléveis.
Fica para nós, um importante gancho para que, com os ventos do Novembro Negro, reflitamos sobre os dados apresentados e sobre a pergunta incômoda. Um Brasil mais velho e mais feminino pode significar uma diminuição da presença de homens e jovens?
Logo teremos muito o que pensar sobre a crescente vitimização violenta dos jovens negros, as consequências disso e o impacto nas políticas sociais, na previdência, nas famílias e no conjunto da sociedade. O Cesec e a Rede de Observatórios de Segurança (composta por nove estados) lançou o relatório “Pele Alvo: a bala não erra o negro”. Com textos profundos de Ana Flauzina e Juliana Borges e ilustrações de Allencar, o documento mostra dados sobre a letalidade policial e a população negra.
A violação da população negra e a negação da plenitude no campo dos direitos humanos pode significar um colapso na nossa sociedade em breve. Por isso, não é mais aceitável mantermos a discussão de um tema tão fundamental para toda sociedade circunscrita há um só conjunto de meses (Maio, Julho e Novembro). Precisamos ampliar e aprofundar o debate com o conjunto da sociedade e instituições, principalmente o judiciário e os setores econômicos, para além daqueles que estão associados ao debate historicamente (assistência social e segurança pública).
Precisamos urgente de um novo projeto de futuro e de Brasil: refundar a sociedade em outras bases, menos injustas, violentas e reprodutoras das violências históricas e abjetas. Parafraseando o MNU, “se ter direito pleno é bom, negros e negras também querem direitos plenos”.