
A dias da LATINA: Encontro Internacional de Mídias Independentes, perguntamo-nos de onde dizemos o que dizemos
Num tempo marcado pela colonização de nossas vidas por algoritmos, *big data* e plataformas que transformam a informação em mercadoria e manipulam a verdade, o lugar de onde nos posicionamos não pode ser a neutralidade.
Nosso horizonte ético é o dos povos e corpos silenciados, das maiorias sem voz nos meios corporativos, daqueles que resistem ao racismo, ao patriarcado, à homofobia e à exclusão. Ser coerente hoje é rejeitar o espejismo da objetividade despolitizada e assumir que comunicar é tomar partido: pela dignidade, pela memória, pela justiça.
A força cultural e simbólica é nosso recurso estratégico frente à uniformidade do algoritmo. A comunicação engajada se afirma na arte, na memória, nos linguagens que abrem fissuras na lógica do mercado e alimentam a consciência coletiva. Apostar em redes colaborativas, em práticas transparentes e na soberania tecnológica não é apenas um gesto técnico, é uma aposta política: criar condições para que as comunidades falem com sua própria voz. Nessa conjunção de ética, cultura e estratégia pulsa a única comunicação possível: aquela que nasce da resistência e se projeta rumo à emancipação.
Comunicar para insurgir no presente
Numa era marcada pela amnésia induzida e pela despolitização do sentido, comunicar a partir da cultura constitui um gesto radical de resistência. Não se trata de um exercício nostálgico, mas de uma prática estratégica, profundamente ancorada na justiça simbólica e na urgência da memória coletiva. Comunicar a partir da cultura é compreender que não há possibilidade real de comunicação social sem o substrato comum de nossos relatos, signos, lutas e pertencimentos.
A cultura não é ornamento. Não se reduz ao folclore nem a uma estética domesticada para consumo digital. É raiz, é centelha e é código: um sistema de significação a partir do qual as comunidades nomeiam o que, durante séculos, tentou-se silenciar. É um território simbólico em disputa.
Sem cultura, a comunicação é apenas ressonância sem sentido. Quando a comunicação social se desconecta dos universos culturais dos povos, o que ela reproduz, consciente ou inconscientemente, são as gramáticas do poder hegemônico: narrativas coloniais, elitistas ou, na melhor das hipóteses, culturalmente irrelevantes. Os algoritmos não compreendem o luto nem a memória. As métricas não registram a densidade da dor. As emoções não se programam para aprendizados *online*. Apenas a partir da cultura é possível enunciar com autenticidade desde o coração pulsante de nossas comunidades.
Porque comunicar não é apenas transmitir: é pertencer, traduzir, visibilizar. E isso implica um ato de reconhecimento daquilo que nos constituiu, que nos feriu e que ainda nos sustenta.
A cultura desafia as ficções do pensamento único. É uma força contra-homogeneizante, um arquivo vivo de dissidências. Cada língua, cada ritmo, cada gesto territorial e cada corporalidade são enunciados políticos. A verdadeira comunicação democrática nasce exatamente aí: onde as vozes marginalizadas podem falar, cantar, chorar, denunciar e celebrar sua existência.
Cultura é identidade, mas também é conflito e resistência. Em termos práticos, isso exige escutar antes de emitir, olhar sem exotismo antes de interpretar e, sobretudo, renunciar ao monopólio da voz para que outras narrativas emergentes possam ocupar o centro. Ou, sob outra perspectiva, reconhecer a existência de múltiplos centros.
Não há inovação sem uma leitura cultural do presente. Inovar não equivale a se adaptar à lógica das plataformas ou a otimizar o *engagement*. Significa reconfigurar o presente com as ferramentas sensíveis do passado e a potência imaginativa do futuro. Inovar é transgredir o senso comum, hibridizar linguagens, hackear os discursos dominantes para voltar a nos comover, para voltar a despertar.
A cultura é dinâmica, é devir. Uma comunicação que não se transforma, que não vibra com os corpos, que não caminha nos territórios que a sustentam, é uma comunicação obsoleta.
As revoluções pendentes também são simbólicas. De pouco adianta falar de transformação se continuamos ancorados aos mesmos marcos semânticos para nomear o novo. As revoluções que faltam são aquelas que se gestam na semântica, na representação, na disputa do imaginário coletivo. E, para isso, precisamos de uma comunicação que abrace a complexidade, que não tema o dissenso nem a densidade, que saiba que o futuro não se decreta: ele se nomeia coletivamente.
Em tempos de sobrecarga informativa, proliferação de falsidades e discursos anestesiados, retornar à cultura é um ato de recuperação do sentido. Comunicar não é meramente informar. É tecer vínculos, abrir possibilidades e enunciar o inominado.
Ali, nesse cruzamento fértil entre memória, criação e rebeldia, disputa-se o porvir de uma comunicação que não se mercantiliza, que não se rende e que, sobretudo, não esquece.