A culpa não é do clima: o extremo climático no Rio Grande do Sul não é caso isolado
A crise ambiental tem suas origens no próprio modo com que o sistema organiza a relação entre o ser humano e a natureza
Por Plano Nacional “Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis”
A humanidade possui valores profundamente solidários. Ainda que o capitalismo atente contra a vida e busque espetacularizar a tragédia, com seus âncoras mais importantes destacados para fazer a cobertura em meio ao cenário de caos, há um sentimento coletivo que conecta as pessoas sem esperar um reconhecimento individual. Quando um repórter global vai entrevistar uma das médicas responsáveis pela acolhida das vítimas das enchentes, ele se refere a ela como a figura mais importante, e ela, prontamente responde que não é ela que é importante, mas todos que estão ali. Com isso, queremos reafirmar toda a solidariedade às pessoas atingidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul, e nos reconhecer nos profissionais e voluntários que vêm somando esforços para enfrentar esse momento difícil. Todos, em coletividade, são importantes para a superação da dor, da perda e do luto.
O Estado do Rio Grande do Sul possui 497 municípios. Destes, 388 foram impactados de alguma forma pelo temporal, somando 1,3 milhões de pessoas atingidas em diferentes níveis, seja pelas enchentes, pela falta de energia, abrigo, água, etc. Os dados até então informam que há 90 pessoas mortas, 132 desaparecidas e 361 feridas.
Não há palavras que possam confortar as pessoas que estão vivenciando este horror cotidiano. Podemos caracterizá-las como parte dos vários refugiados climáticos ao redor do mundo, que, em essência, são pobres, trabalhadores, moradores das periferias urbanas e rurais e impactadas pelo fio comum da destruição capitalista. Duas questões emergem com força em nossos dias, mas não são novas: a primeira parte de que “o capitalismo destrói suas principais fontes de riqueza: o ser humano e a natureza”. Karl Marx, que afirmou isso há 150 anos atrás, continua e continuará atual enquanto o modo de produzir capitalista existir, pois a destruição está em sua natureza de funcionamento.
A crise ambiental que vivenciamos vai muito além da crise climática e tem suas origens no próprio modo com que o sistema capitalista organiza a relação entre o ser humano e a natureza. A produção orientada somente pela acumulação de lucro gera um enorme desperdício dos recursos naturais, ou, como preferimos denominar popularmente, os bens comuns da natureza. Afinal, quem pode ter a propriedade privada dos rios, das plantas, dos animais? Este modelo consumista e acumulador extrapola as necessidades da vida digna da humanidade, e ele agora está em uma crise profunda, uma crise estrutural do sistema capitalista.
Na verdade, os interesses pela exploração desenfreada servem apenas para deixar os ricos cada vez mais ricos, e essa escala de produção, circulação e consumo orientada na lógica da acumulação envenena o planeta com gases tóxicos, lixo, contaminação das águas e do solo, desperdício de eletricidade. Importante ressaltar que o problema não está em fechar ou não a torneira, pois enquanto alguns podem gastar milhares de metros cúbicos de água, outros nem possuem água potável para beber.
Logo, num sistema perversamente desigual, as consequências disso, sejam elas sociais como a fome, a miséria, a falta de saneamento, a violência armada, sejam elas ambientais, como a vivida nas terras gaúchas e enfrentadas também no Quênia, Tanzânia e outros países africanos nestas semanas, recaem sempre sobre os ombros dos que tudo produzem e pouco possuem: os trabalhadores e trabalhadoras que moram nos locais de maior vulnerabilidade social dentro das cidades, como as encostas e fundos de vale, pois são empurrados pela especulação imobiliária e pela ação do Estado que legitima a instalação de empresas e condomínios fechados nos locais mais privilegiados.
Assim como na pandemia de Covid-19, não estamos todos no mesmo barco. Há barcos equipados com a melhor tecnologia para enfrentar os desastres ambientais causados pela ação dos grandes capitalistas, barcos cheios de botes salva-vidas. Barcos que levam as pessoas para lugares onde podem se refugiar, se aquecer e refazer suas vidas sem tantos custos.
E há barcos superlotados, furados, sem coletes, sem motor e esses barcos são muito mais numerosos. O que queremos dizer é que os efeitos climáticos e ambientais da crise do capitalismo recaem sobre a parcela mais pobre e mais numerosa da sociedade. Assim foi durante a Covid-19, que, por sinal, é consequência da degradação das florestas asiáticas, como aponta a pesquisa exposta no livro Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência, de Rob Wallace.
Vamos à segunda questão: o que a humanidade está fazendo para solucionar este grave problema? Há uma série de iniciativas da comunidade internacional para debater a questão ambiental desde o fim dos anos 1970. A pauta ganha mais força e projeção nos países a partir dos anos 1990, sobretudo com a Rio-92, ou a famosa ECO-92, que é a antecessora das Conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, as famosas COPs (em inglês “Conference of the Parties” – Conferência das Partes, em tradução livre).
A COP serve, ou deveria servir, para a busca de soluções, elaboração de propostas e alternativas às mudanças climáticas, construídas entre os países junto à comunidade científica. Contudo, estes espaços se mostraram, antes de tudo, um lugar para organizar a acumulação de riqueza com a crise climática, ou “um lugar de oportunidades para lucros”. Nelas, têm se desenhado ideias de transições energéticas que movimentam milhões em recursos financeiros, se arquitetam mercados de carbono e agriculturas “inteligentes” que enchem os bolsos dos causadores da crise, mas pouco agem na centralidade de debate climático, como a necessidade de adaptar as cidades e o campo para enfrentar a crise climática.
Se olharmos atentamente para as propostas elaboradas nestes eventos internacionais veremos que elas não passam, no bom português, de uma tentativa de “tapar o sol com a peneira”, pois se tratam de formas lucrativas de enfrentar o problema e não de mudança paradigmática no modo de uso e ocupação dos territórios e dos bens comuns, uma vez que não se propõe uma alternativa à forma destrutiva de se relacionar com a natureza, mas sim a mudança da forma de destruir e de poluir. Troca-se a emissão de carbono pela contaminação da mineração e a produção de imensas quantidade de lixo resultante da produção de energias “limpas”, no médio prazo.
Situações dramáticas e catastróficas como a dos últimos dias no Rio Grande do Sul nos alertam para a incapacidade de mecanismos como a ONU de propor alternativas concretas, mas eles não são os únicos a lidar com a questão. Há diversos países do chamado Sul Global que vem buscando alternativas. A Etiópia, por exemplo, plantou 350 milhões de árvores em 12 horas, esforço combinado entre ação do Estado e da população para atuar diretamente sobre a situação de seca causada pela vegetação reduzida a 4% do território nacional. A solução para a crise ambiental são os povos que a fazem, com o compromisso do Estado ao lado dos mais vulnerabilizados.
No caso brasileiro, a tendência é de cada vez mais vivenciarmos esses eventos climáticos extremos, e é necessário atuar na complexidade que a situação exige. Adaptação territorial no campo e nas cidades, previsibilidade e conscientização da população sobre os alertas, fundos que subsidiem a reconstrução da vida das famílias e pessoas atingidas, e principalmente a reorganização de nosso modelo agrícola. É necessário, por exemplo, que as universidades com seus estudos geomorfológicos, climáticos e demais ferramentas deem subsídios para o planejamento territorial junto com as populações urbanas e rurais, papel este que deveria ser do governador, no caso em questão, e que foi negligenciado.
Há o fenômeno de ordem natural que explica a situação climática na região Sul do país neste momento, que se trata da circulação geral da atmosfera. Um dos fatores que contribuíram para que as chuvas ficassem concentradas no Rio Grande do Sul foi o sistema de alta pressão atmosférica na região Centro-Sul, que impediu a frente fria que chegou nos últimos dias de avançar sobre o continente e espalhar as chuvas, reduzindo possibilidade de chuvas concentradas. Mas, existem os fatores de influência direta na dinâmica atmosférica, como o forte calor que emana desta região, explicado pelas queimadas e do desmatamento, sobretudo no Cerrado para plantio de commodities. A terra nua, sem vegetação, esquenta e retém calor, o que contribui para que a frente fria, que forma a chuva, possa avançar para outras regiões.
Exemplo disso foi o legado de Ricardo Salles, que, durante seu mandato de ministro do meio ambiente no governo Bolsonaro, editou mais de 300 atos oficiais que flexibilizaram os crimes ambientais para o agronegócio, colocando em risco a política ambiental brasileira, conforme evidenciou informações levantadas pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Ou seja, temos toda a tragédia bolsonarista, o Congresso e sua enorme bancada de deputados federais da bala e do boi como responsáveis diretos desta situação. Estamos literalmente vivenciando as consequências de “passar a boiada”, promovida por Ricardo Salles, Luciano Zucco e todo o time de grileiros, latifundiários, jagunços que promoveram a destruição ambiental no governo Bolsonaro, marcado por nuvens de fuligem, garimpo ilegal, dias de queimadas intensas, entre tantos outros episódios. Este mesmo Congresso impõe um teto de gastos que impede que o recurso chegue de acordo com a necessidade de atendimento aos atingidos e atingidas no Rio Grande do Sul e que fecharam os olhos para o colapso da Lagoa Mundaú como resultado da mineração da Braskem, em Maceió e que deslocou forçadamente mais de 60 mil famílias.
Não tem como desvincular a tragédia ambiental da questão fundiária brasileira, tampouco fazermos lutas em defesa da natureza sem falar de reforma agrária, revogação do marco temporal, reconhecimento e regularização das terras de povos e comunidades tradicionais. Não há possibilidade de alternativa sem começar por apontar os verdadeiros culpados pela crise climática, pois a luta ambiental está no motor da luta de classes, e para determos as tragédias e preservar as vidas, devemos parar o sistema capitalista e construir um outro modelo de sociedade, em nome dos que se foram, em nome dos que estão vivos, em nome dos que virão. A natureza e a humanidade não aguentam mais o capitalismo.
Nessa disputa de narrativas, que coloca a espetacularização de um lado, e os fatores determinantes da crise climática de outro, é fundamental apontar para o elemento da solidariedade que se renova a cada situação de vulnerabilidade social vivenciada. Apostamos na prática e na reflexão sobre a solidariedade de classe nesse momento de atenção com os trabalhadores e trabalhadoras no Sul. Não se trata de campanha de arrecadação, se trata de partilha e de cuidado coletivo. Essa é, por exemplo, a preocupação de instalar Cozinhas Solidárias e Comunitárias e de destinação de parte da produção de alimentos produzidos pelas cooperativas do MST em outros estados que estão sendo enviados para contribuir na recuperação das famílias.
É por esta solidariedade que acreditamos que nem tudo está perdido, e com isso avançamos para a última questão: o que é possível fazer diante deste cenário? Um primeiro elemento diz respeito à luta que os países do Sul global vêm fazendo, em parte nos espaços internacionais de discussão da dita governança climática global, que é exigir que os países do centro do capitalismo financiem as mudanças necessárias para enfrentar a crise ambiental.
Todavia, falta qualificar essa luta colocando na ordem do dia o financiamento para a adaptação, que é o patinho feio das metas e acordos mundiais do clima, pois fica sempre escondida enquanto as ações de mitigação ganham toda a atenção por fazerem parte das estratégias de lucro de grandes conglomerados como a Tesla, que, ao mitigar a emissão de CO2 com seus carros elétricos, lucra bilhões com a destruição de florestas e rios para extrair os minérios necessários para isso.
É urgente pensarmos a adaptação às mudanças climáticas, e lutar por investimentos suficientes para tanto. Pensar em uma cidade com planejamento, inclusiva e eficiente, que atenda aos interesses populares, e uma agricultura camponesa de base familiar, agroecológica, adaptada às condições do clima, do bioma e com subsídios estatais. Isso se faz com planejamento urbano e políticas eficientes de moradia que possibilitem ao povo ocupar espaços que não estejam sujeitos às consequências de eventos climáticos extremos. É preciso pensar também uma produção agrícola que crie condições de se produzir na adversidade do clima, algo que já é feito através dos Sistemas Agroflorestais.
A questão ambiental deve ser convertida em campo de batalha para que consigamos avançar na construção de soluções verdadeiramente efetivas, que resolvam os problemas ambientais e sociais gerados pelo capitalismo. Como afirmam nossos parceiros das periferias: “nada sobre nós, sem nós!”. Nós seguiremos fazendo o cordão da solidariedade e estendemos nossas mãos para alcançar um outro mundo, construído braço a braço. Nossos sentimentos de indignação com a tragédia e de solidariedade com as gaúchas e os gaúchos.