A COP30 foi mais nossa do que antes
A COP30 acabou, mas suas decisões já moldam o cotidiano de quem vive no Brasil, mesmo de quem nunca ouviu falar dela
por Kawê Veronezi para a Cobertura Colaborativa Mídia Ninja da COP 30
Maria continua sem entender completamente o que acontece nas conferências globais do clima. Mas hoje, em 2025, ela sabe uma coisa que não sabia na COP26: as enchentes que levaram móveis, empregos e vizinhos de sua rua não são obra do acaso. A COP30, agora no Brasil, não é mais uma abstração distante, é assunto de mesa de bar, de fila de UBS, de conversa com a filha que voltou cedo da escola porque o calor fechou as aulas.
João também mudou. Se em 2021 ele mal sabia quem era responsável pelo aquecimento global, hoje ele vê, no próprio bairro, as marcas de um país que está ficando mais quente, mais caro e mais desigual. Mas isso não significa que João tenha mais acesso a informação qualificada. Pelo contrário. A máquina de desinformação cresceu em escala industrial, alimentada por interesses poderosos que lucram quando a população entende menos, e não mais, sobre o clima.
A COP30 chega ao Brasil com um paradoxo cruel: é a primeira conferência do clima na Amazônia, mas para grande parte da população que vive aqui, o debate segue inacessível. É quase como se o país tivesse virado palco de um grande evento sem que o povo tenha recebido o convite oficial. E isso não é acidente: é estratégia.
Se nos anos anteriores Maria e João desconheciam os termos técnicos das COPs, agora enfrentam um cenário ainda mais perigoso: a desinformação deixou de ser espontânea e se tornou projetada.
Afinal, quanto menos informada for a população:
- mais fácil é vender “soluções verdes” que não mudam nada;
- mais confortável fica para governos e corporações anunciarem metas que não pretendem cumprir;
- mais simples é justificar projetos que avançam sobre territórios indígenas, quilombolas e periféricos.
Enquanto isso, as violências climáticas se intensificam. O Brasil bate recordes de calor, seca e enchentes, e segue entre os países que mais matam defensores ambientais. O desenvolvimento que nos prometem continua desmatando, adoecendo e expulsando, embrulhando em discursos de “modernização” amplamente reproduzidos por emissoras tradicionais e impulsionados por plataformas digitais. Sem educação climática nas escolas, rádios comunitárias, jornais e serviços públicos, a população segue tratando o clima como “tema de especialista”, quando na verdade é tema central da economia, da saúde e da segurança alimentar.
O jogo que está mudando
Mas algo mudou profundamente desde a COP26: uma nova geração entrou em cena com força inédita.
Jovens pesquisadores, comunicadores, programadores, lideranças indígenas, cientistas e empreendedores estão produzindo conhecimento, tecnologia e mobilização em uma escala nunca vista antes. Estão nos tribunais, nos laboratórios, nas startups de tecnologia verde, nas assembleias legislativas e, agora, em Belém.
Os povos tradicionais, por sua vez, seguem dando aquilo que os negociadores internacionais ainda não foram capazes de oferecer: soluções reais, testadas, aplicadas, adaptadas aos territórios. Ainda assim, continuam sendo os menos ouvidos nas mesas oficiais, quando deveriam estar à frente delas.
O que Maria e João entendem hoje e o que ainda escondem deles
Maria sabe que sua cidade alagou duas vezes no último ano. João sabe que a conta de luz subiu porque falta água nos reservatórios. Eles entendem o impacto, mas ainda não participam da decisão.
E isso tem um motivo claro: quanto menos público no debate, mais confortável é para governos e corporações “negociarem” entre si sem enfrentar pressão social.
É como disse o jornalista Claudio Angelo, anos atrás, e que segue verdadeiro na COP30:
“Os países não vão às conferências do clima para proteger a humanidade. Eles vão para se proteger das decisões da conferência do clima.”
Belém pode ter sido a virada de chave
A COP30 foi realizada no coração da Amazônia. E se tem algo que esse território nos ensina é que tudo está conectado. Não dá mais para separar o clima de desigualdade, floresta de comida, Amazônia de democracia e crise climática de crise social.
O Brasil teve, talvez, sua melhor chance em décadas de transformar uma COP em processo de participação popular e não apenas em espetáculo diplomático. Preparar a sociedade para entender e cobrar as decisões climáticas é uma estratégia de soberania e resiliência nacional.
O que foi decidido nestes dias em Belém não é o futuro abstrato de 2050, é o cotidiano imediato de Maria, de João, de seus filhos, vizinhos e territórios. É a comida da feira, o preço da energia, a água da torneira, o desemprego que aumenta após cada desastre, a violência que avança quando o Estado não chega.
O desafio agora é impedir que a COP30 se transforme em mais um capítulo de promessas sem base concreta. É necessário garantir políticas que protejam vidas, a sociedade deve ocupar o debate, e as instituições devem abrir caminho para quem realmente conhece os territórios.
Sem debate público acessível, tudo isso vira moeda de troca em reuniões a portas fechadas.
O pós-COP30 exige outra postura
Se queremos que a COP30 deixe um legado real, precisamos transformar Maria e João, e tantos outros, em participantes do debate e da ação. Para que nas próximas conferências eles estejam não apenas informados, mas cientes do que exigir e por quê.
A luta contra a crise climática é sobre garantir dignidade para quem vive nele.
E essa luta começa com uma frase simples e urgente: ninguém deve ficar para trás. Nem em Belém, nem no Brasil, nem no futuro.