Samia Bomfim: 31 de março: nada a celebrar
Seria apenas bizarro se não fosse tão perigoso. O flerte de Bolsonaro com o golpe militar de 1964 não só envergonha o nosso país como presta um desserviço à democracia.
Hoje completam-se 55 anos do início do golpe, quando os militares retiraram um governo legítimo do poder e deram início a uma ditadura sangrenta, marcada pela perseguição política, pela cassação de parlamentares, de direitos, pelas torturas, assassinatos e desaparecimento de manifestantes e de cidadãos e cidadãs que fizeram parte da oposição ao regime, pelo fechamento do Congresso Nacional e pelo cancelamento das eleições diretas para presidente da República.
Sem dúvida, foi um dos períodos mais sombrios de nossa história, e aqui no Brasil, diferentemente de alguns outros países da América Latina, os militares nunca fizeram uma confissão de culpa ou qualquer coisa perto disso. Muito pelo contrário. No começo dessa semana, o militar que ocupa o cargo mais alto deste País afirmou que é preciso celebrar a ditadura nos quartéis.
Aliás, para Bolsonaro nem houve ditadura e, segundo ele, isso é invenção da esquerda. Ele até chegou ao cúmulo de afirmar que o que tivemos foram “alguns probleminhas como qualquer casal”.
As declarações de Bolsonaro ressoaram negativamente nos quatro cantos do País. A indignação e a pressão popular lhe causaram medo, tanto que ele fugiu de uma visita que estava marcada na Universidade Mackenzie, em São Paulo. E na última sexta-feira, ele, mais uma vez, voltou atrás do que disse, afirmando que não falou em comemorar, mas “rememorar, rever o que está errado, o que está certo e usar isso para o bem do Brasil no futuro”.
Só que Bolsonaro precisa aprender que rever os erros implica em não esconder o passado. Não dá para fingir que não houve censura, que 20 mil pessoas não foram torturadas e que 423 não foram assassinadas ou desapareceram, segundo dados da Comissão da Verdade. Não dá para reduzir os métodos de tortura – como afogamentos, choques elétricos e pau-de-arara etc – a “alguns probleminhas”.
As décadas de repressão deixaram marcas e contaminaram instituições. Nosso sistema policial é, infelizmente, um grande exemplo disso. A polícia tornou-se militar na ditadura e os métodos de tortura que os nossos policiais aprenderam naquela época formataram a violência institucional que sofremos até hoje, sobretudo a população negra e pobre que é humilhada, torturada e assassinada todos os dias, em todos os estados brasileiros.
A ditadura aprofundou os problemas sociais. Muita gente da laia de Bolsonaro faz questão apenas de lembrar que a economia cresceu 10% ao ano entre o período de 1968-1973, mas esquece de rememorar o achatamento dos salários dos trabalhadores e a concentração de renda, fatores determinantes para o boom da desigualdade.
Portanto, o crescimento do PIB não resultou na melhora nos indicadores sociais, como espalham alguns.
Além disso, tem a questão da corrupção. Já naquela época, os militares afirmavam que iriam limpar o País da corrupção, mas o que fizeram foi censurar as notícias sobre a roubalheira. É importante lembrar que o pagamento de propinas de empreiteiras ao governo se consolidou no período ditatorial, e que empresas como Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Odebrecht viraram gigantes do mercado naquela época. Coincidência, não?
É importante esclarecer, também, que todo esse esquema de arbitrariedades beneficiava apenas a alta cúpula militar. Muita gente de baixa patente ou até dissidentes daquela doutrina hegemônica não ganharam nada com o regime e, também, sofreram prisões e torturas.
Ao querer celebrar o 31 de março, Bolsonaro demonstra não saber nada sobre o Brasil e ser incapaz de enxergar nossa a história para além do véu do corporativismo militar.
Não dá para um presidente da República ter tanta sintonia com a ditadura – a ponto de espalhar militares em 21 áreas do governo, o maior número desde a redemocratização – e ignorar toda a herança negativa desse período. Já passou da hora de Bolsonaro tirar a venda e perceber que hoje nós, brasileiros, não temos nada a comemorar.