Texto do TransPoeta Esteban Rodrigues para a coluna do Movimento Artístico Poético Nacional TransPoetas

Vinte e sete. Esse foi o número de pessoas unidas pela primeira vez no Congresso Nacional, em Brasília, num ato organizado para discutir sobre os direitos e a realidade da comunidade transgênera no Brasil. Vinte e sete travestis e transexuais que se lançaram aos olhos de quem não nos via de propósito. É sobre isso de ver que é preciso falar. Isso de ver o que se quer e como não querem ver a nós. Nós que também raça, também sexo, também política, também profissional, também que sangra, também que chora e também que ri. É sobre isso de não nos ver e ainda resumir só a um recorte: Trans.

No dia 29 de janeiro de 2004 vinte e sete dos nossos esteve naquele lugar mostrando ponto por ponto de como é viver sendo só uma coisa sobre os olhos de vocês e isso configurou uma revolução. Eu não sei se vocês achavam que nos escondíamos, na verdade, mas naquele dia fomos vistos pelos que olham de cima.

A manutenção do poder no Brasil se solidifica em estruturas hegemônicas de sociedade. Dito isto, a ida de vinte e sete travestis e transexuais foi um marco multidimensional para a comunidade e para o movimento transgênero do país. Porque? De novo, aquilo sobre ser visto. Entender a dimensão desse ato é entender como corpos marginalizados e inferiorizados pela sociedade a partir de uma leitura também hegemônica têm em si organizações e motivações que precisam ser mostradas, se não pela sensibilização, pela reivindicação dos direitos enquanto cidadão.

A subjetividade dos corpos transgêneros não se limitam a uma passabilidade (que é constantemente cobrada por essa hegemonia para que sejamos tratados com um mínimo de respeito e dignidade), mas também acesso, oportunidades profissionais, reconhecimento de capacidade intelectual. Hoje a comunidade trans se apega ao direito à utilização do nome social, ao processo menos burocrático (ainda que não simples) para alteração do registro civil, possibilidade de acompanhamento médico pelo SUS e outras conquistas que, em luta, vieram sendo cobradas constantemente por nós mesmos. E não há um dos nossos entre os que detém o poder. Pense.

Nesse processo somos recebidos por olhares e olhares e olhares, e é isso, ser visto tem um quê de exposição também. Como se fôssemos uma grande obra de mau gosto no meio da Lapa, interferindo na proposta de civilização perfeita. Essa é a luta, ser visto. Fazer se ver. Nós nos mostramos diariamente, incessantemente, para vocês. Mas o negócio é que também nos mostramos diariamente e incessantemente para outros de nós e mais de nós. Nos tornamos referência, exemplo, meta, amigo.  Nos tornamos abraço, porque é preciso lembrar que o dia da visibilidade trans não é para nos resumir e rotular, é para que sejamos vistos como também humanos, como também dignos de afeto.

O exercício de se ver em um semelhante é acalentador, a possibilidade de nos vermos em outro mais velho e mais novos se verem em nós é o que simboliza na verdade o dia da visibilidade trans. No início sempre pensamos estar sozinhos, avessos a este mundo, estranhos por natureza. A sensação de insuficiência.

e todos os olhares que recaem sobre mim
me veem assim
assim insuficiente
assim não tão
assim
quando eu saio na rua e meu reflexo
é desconhecido quase invisível
me sou insuficiente
quando eu saio pela mesma rua e aquele mesmo reflexo
ainda é desconhecido, por tanto tempo
me declaro
in su fi ci en te
porque ser insuficiente
não é não ser visto
é não se ver
(sal a gosto, 2018)

O se ver além do espelho é fundamental na construção dessa rede de apoio. O incentivo a quem somos, o conforto do desabafo, a segurança de dormir sabendo que não está sozinho, é também sobre isso que se trata o dia 29 de Janeiro, é sobre quantos de nós se mostram para que outros de nós nos vejam. Essa é uma estratégia de sobrevivência. Por isso, em primeira pessoa, sou grato à quem se mostrou antes de mim para que eu também pudesse me ver. Me mostro, para que mais dos nossos não se sintam sozinhos.