por Edgilson Tavares de Araújo*

Estamos aqui. Assim celebramos os 20 anos do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), um modelo federativo de organização e gestão de uma das mais importantes políticas públicas do Brasil. Uma construção coletiva que, entre avanços e tempestades, resiste porque é feita de gente — e de compromisso comum com a dignidade.

O Brasil carrega cicatrizes profundas: racismo, aporofobia, capacitismo, misoginia, LGBTfobia. Essas estruturas geram desproteção social. E é o SUAS que se levanta diariamente para impedir que essas feridas definam destinos. Não é ajuda ou caridade, não é favor, não é benevolência. É assistência social — direito constitucional de seguridade social, garantido por uma política pública. É o Estado assumindo que cuidar da vida e da dignidade humana é tarefa indeclinável.

O SUAS, com seus 470 mil trabalhadores atuando nas 27 mil unidades públicas (CRAS, CREAS, Centros Pop) e nas 31 mil organizações da sociedade civil, vive uma rotina em que a busca por justiça social não se declama — se faz. Está no trabalho social com as famílias; na promoção do convívio e da vivência familiar, comunitária e social; na segurança de renda propiciada pelo Programa Bolsa Família e pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC); na acolhida com dignidade; no desenvolvimento da autonomia — não apenas entendida como capacidade de consumir, mas como possibilidade de decidir os rumos da própria vida. Está, sobretudo, nos usuários e beneficiários da política pública que descobrem que não são “vulneráveis”, mas socialmente desprotegidos e vulnerabilizados por desigualdades e injustiças históricas.

Mas 20 anos também escancaram o que falta: cofinanciamento público estável e permanente, com vinculação orçamentária; concurso público e melhores condições de trabalho; vigilância socioassistencial fortalecida; ampliação dos serviços; mais democratização e representatividade nos conselhos. Tudo isso pode ser alcançado com sustentabilidade financeira para a política pública de assistência social. Por isso, o Brasil clama pela aprovação da PEC 383/17, que garante ao SUAS a obrigatoriedade da destinação orçamentária de 1% da receita corrente líquida pelos entes federados. Apoiar e votar a PEC é pensar em investimento social, pois é esse sistema que garante desde a acolhida à população em situação de rua até o atendimento à primeira infância; da proteção às mulheres vítimas de violência às respostas a emergências, desastres e calamidades públicas; da garantia de renda básica ao cuidado com pessoas com deficiência e pessoas idosas. Com previsibilidade orçamentária, poderemos assegurar proteção social, evitar descontinuidades e garantir que o SUAS não seja novamente desmantelado por governos que não reconhecem o dever do Estado na garantia de direitos sociais.

Urge enfrentar, sem hesitar, a disputa entre o Estado fiscal, que enxerga apenas números e “entregas”, e o Estado social, que defende direitos para pessoas e famílias. É preciso reconhecer que a assistência social — com sua capilaridade — não pode ser tratada como balcão burocrático, tampouco como “pronto-socorro social”. Falta reconhecer, respeitar e compreender o lócus de atuação do SUAS, que é um sistema federativo que não “enxuga gelo”: ele destrói icebergs de injustiça.

Defender o SUAS é reafirmar suas gramáticas: autonomia, protagonismo, emancipação, ética amorosa — como diria bell hooks, aquela que insiste em lembrar que cuidar é ato político. É também reconhecer que a democracia se sustenta na escuta: não a escuta protocolar, mas a que admite conflito e produz síntese.

Vinte anos depois, o SUAS segue sendo um dos maiores patrimônios materiais e imateriais do Brasil — seja por sua capilaridade de atendimento, seja por trabalhar subjetividades que transformam e salvam vidas. Ainda há quem tente reduzir a política pública de assistência social a uma ação de segunda categoria, que precisaria da neoliberal “porta de saída”. Aos que estigmatizam a proteção social distributiva, clamemos em bom tom: não passarão! Porque, enquanto houver desproteção, violências, negligência, isolamento social, fome e pobreza, seguiremos repetindo o que aprendi na ancestralidade e na luta: estamos aqui. E continuaremos aqui sendo, resistindo e existindo.

Edgilson Tavares de Araújo* é Presidente do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS); Diretor no Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS); Doutor em Serviço Social