Enquanto as ordens de evacuação da cidade de Teerã eram cinicamente emitidas por Donald Trump nas redes sociais ou enquanto as Forças Armadas de Israel alertavam moradores de determinados bairros da megalópole de que deveriam deixar a região, um iraniano optou por permanecer em seu apartamento numa das maiores capitais do mundo. Alvo da desinformação de seu próprio governo e das potências beligerantes, o morador buscava em canais alternativos notícias que pudessem orientar sua vida, seu destino.

Por meios pouco tradicionais, consegui seu contato, a conversa sofria para fluir. A desconfiança inicial, a queda frequente da Internet por parte do governo iraniano ou as bombas mortais das democracias pareciam obstáculos reais para o diálogo.

Quando finalmente conseguimos conversar, pedi que ele explicasse aos leitores brasileiros o que era a vida hoje em Teerã, uma cidade repleta de mitologia. Ao comentar que eu era brasileiro, sua reação foi eloquente: “você conhece Mídia NINJA? Gosto muito do que fazem”. 

Sua condição inicial para ser publicado era simples: não queria seu nome revelado, temendo represálias. “Não é um bom momento”, explicou.

Mais uma vez, porém, a conexão foi cortada e, por dias, não conseguia resposta. De repente, as bombas americanas na noite do sábado contra as instalações nucleares do Irã pareciam ter aberto um capítulo inédito e perigoso no mundo. E, de uma maneira inesperada, o frágil cessar-fogo dias depois reabriu a possibilidade de uma comunicação. 

Com dois textos poderosos, o iraniano nos leva para dentro de seu apartamento no centro da cidade, enquanto as bombas e aviões formavam parte de sua trilha sonora.  

Textos marcados por um realismo cru e a vontade de olhar com os próprios olhos aquela experiência estarrecedora da guerra que durou doze dias. 

Quando finalmente estávamos nos despedindo, ele mudou de ideia. Sim, seu nome poderia aparecer: Milad Houshmandzadeh, um morador de Teerã:

Abrir os olhos para ver com mais precisão

Sim, estou em Teerã, perto do centro da cidade, em minha própria casa. Nunca tive tanta vontade de ficar em minha própria casa. Talvez seja porque eu prefira estar com os mensageiros de motocicleta que passam por fogo, tijolos e fumaça em busca de um pedaço de pão, e estou disposto a abrir mão do privilégio de ir a vilas seguras fora da cidade. 

Talvez seja por causa de um desejo masoquista, e ficar com outras pessoas seja uma pretensão. Talvez seja sentimental, mas, de qualquer forma, prefiro morrer em minha própria casa a fugir. Pelo menos é assim que prefiro agora.

A expressão da comunidade internacional era encorajadora, bonita e compreensível, mas algo dentro de mim estava me chamando para estar presente, observar e aceitar que não há nada que se possa fazer. Em guerras ultramodernas, quase nenhum lugar é seguro.  Pode ser menos seguro estar cercado por vários acampamentos e quartéis, mas quando o primeiro som de que você se lembra desde o nascimento é a sirene da guerra e o som das explosões, pelo menos você prefere abrir mais os olhos em vez de se afastar, para ver a realidade com mais precisão, para lembrar e aprender com ela.

Cada um enfrenta as crises à sua maneira, não há necessidade de ter medo do feio, de ficar chocado ou de ser reservado. Insistir em nos comportar à nossa maneira desgasta o outro. Minha reação foi deixar para lá, você faz o que quer.

Prefiro imaginar um drone ou um jato de combate com todos os motores passando, em vez de pensar constantemente no interior de Teerã do lado de fora.

Dessa vez terei mais calma para consertar os estragos causados pelas ondas de choque das bombas com mais meticulosidade, cortar melancia com calma, cozinhar mais lentamente do que o normal e procurar za’atar nas perfumarias, mas sentir o gosto da Palestina e do Líbano sob meus dentes. E lembrar da mulher idosa e do homem idoso que, sem nenhuma esperança, se abraçaram nos últimos momentos do naufrágio do Titanic.

Prefiro me orgulhar desse meu descuido ou me envergonhar dele e dizer a Netanyahu, com essa imaginação ingênua, que sua guerra não atrapalhou minha vida cotidiana, enquanto, ao mesmo tempo, leio todas as notícias com espanto, admiração, raiva e ódio.

Talvez eu fuja quando sentir que é hora de fugir, talvez hoje à noite, talvez amanhã à noite.

Mas, pelo menos agora, prefiro ficar em casa, rever minhas lembranças, tirar o pó das mesas em meio ao fogo, à fumaça e à poeira, varrer a casa, lembrar a localização exata dos objetos, ouvir o estilo de Nooshin Laban, uma vez na voz de Marzieh e depois na voz de Sima Mafiha, chorar pelos perdidos, assistir a memes e reels e rir do meu próprio desespero.

Nossa canção de ninar: os disparos antiaéreos

Você está preso em Teerã. Todos os dias, alguns amigos e familiares ligam para você, dizendo para se levantar e deixar a cidade. Você precisa fazer algo com cada um deles, convencer alguns, deixar outros tristes e preocupados. Mentir para alguns.

Você tenta ligar para os amigos que ainda não saíram da cidade. Perguntar como eles estão. Marcar um encontro com alguns deles para se verem e se reunirem em algum lugar. Você pergunta aos outros se ouviram a explosão? Foi perto de sua casa? Havia fumaça? Como foi o incêndio? Alguém ficou ferido? Civis.

Foto enviada por Milad Houshmandzadeh enquanto esperava cair as bombas

Você confere as notícias a cada dois minutos. Quando você chega às últimas notícias, vinte novas histórias chegaram, atingiram o leste de Teerã, uma base foi explodida, um general foi morto. O pão ficou escasso no norte do Irã, a água mineral em Teerã.

Você cozinha, notícias novamente, a internet foi cortada em metade do país. Você faz parte dessa metade. Dois dias sem notícias… as notícias são apenas de boca em boca. Nos telefones.

Estamos de volta à era pré-Internet. Os aplicativos estão mortos, ninguém leva a sério os aplicativos de Internet Bluetooth. Estamos de volta às mensagens de texto. Todos mandam corações, abraços e beijos uns para os outros, e ninguém acha que há algum tipo de flerte envolvido.

Muitos estão se despedindo de suas casas. “Se não nos virmos novamente…” é a frase mais repetida atualmente. Nas primeiras noites, o som do disparo antiaéreo nos fazia perder o sono, mas agora ele se tornou nossa canção de ninar noturna. A menos que haja uma terrível explosão.

Depois de cada explosão, as notícias estão de volta: Netanyahu fez uma declaração, Macron condenou, Erdogan condenou veementemente.

Você ri desse show. “O show reúne coisas separadas e, por fim, as reúne como coisas separadas.”

Você liga para os outros, alguns estão chorando de bêbados, outros estão fumando ópio, e Dariush ouve até que a próxima explosão leve embora o que quer que eles tenham fumado.

Alguns estão fumando maconha e estão chapados, rindo em paranoia.

A Internet se conecta. Toneladas de mensagens de preocupação, toneladas de notícias se acumulam: Mísseis iranianos a caminho de Tel Aviv, vinte e quatro pessoas mortas e feridas, três gravemente feridas. Dois generais não sobreviveram ao assassinato. Vangloriar-se, vangloriar-se, vangloriar-se.