Desconforto: 1522 mortos de janeiro a março.

O ano de 2017 trouxe para Pernambuco um recorde que ninguém deseja: o de campeão em números de homicídios no país, com projeções para ser um dos recordes mundiais de violência até o final do ano.

Esse número alarmante não mostra os outros números por ele escondidos. Nem nomes.

Em pedido de informações dirigido ao governador Paulo Câmara, indagou-se o perfil dessas mortes. Dentre as perguntas, indagou-se os nomes das vítimas, causa das mortes, quantos jovens (15 a 29 anos), quantos negros, quantos feminicídios, quantas vítimas da violência policial (ver a íntegra do pedido de informações ao fim).

Em suma: quem morre em Pernambuco e por que? Sem essas respostas, não é possível elaborar políticas públicas de segurança. Sem que esses dados estejam disponíveis, fica inviabilizada a participação da sociedade civil na elaboração dessas políticas, um dos pleitos do protesto que vai acontecer no dia 19 de abril, em frente ao Palácio do Governo.

O protesto ganhou o nome de #Desconforto como forma de crítica ao pronunciamento do governador que, depois de publicados os números de mortes em janeiro e fevereiro – 977 mortes -, afirmou que os números não passavam de boato. Ao ser surpreendido pelas publicações oficiais do próprio governo admitindo o número alarmante de mortes, confessou que a situação estava “desconfortável”, o que causou enorme repercussão e revolta nas redes sociais, dada a evidente incapacidade de dar uma resposta ao problema da violência, literalmente.

Ausência de respostas

O prazo para resposta ao pedido de informações venceu no dia 16, mas o governo requereu prorrogação de prazo. Infelizmente, a suspeita é a de que o governo não possua os dados solicitados, o que explicaria a completa ausência de políticas de segurança pública como verdadeira causa da escalada da violência no estado.

É possível concluir, pela avaliação de entrevistas concedidas, que o governo responsabiliza as guerras entre grupos de traficantes pelos números assustadores.

Entretanto, a falta de dados oficiais (ou, no mínimo, a falta de divulgação desses dados) sobre os perfis das mortes em Pernambuco nos indica que a elaboração de políticas públicas nessa área segue em um barco sem bússola, ao sabor dos ventos.

Retrato do governador, Paulo Câmara, pendurado na recepção da sede da Secretaria de Planejamento do Estado. Foto: Eric Gomes / Mídia NINJA

Retrato do governador, Paulo Câmara, pendurado na recepção da sede da Secretaria de Planejamento do Estado. Foto: Eric Gomes / Mídia NINJA

Ausência de políticas públicas

Um dos idealizadores do programa “Pacto pela Vida” – um programa que, a despeito de não ter sido isento de críticas, havia sido responsável pela diminuição do nível histórico de violência em Pernambuco – tem criticado duramente a atual ausência de políticas públicas de segurança. José Luiz Ratton afirmou em sua rede social que não existem projetos de transformação da Funase e do Sistema Prisional, ou voltados para seus egressos, nem de expansão de medidas e penas alternativas ou a programas de mediação de conflitos. Ele também critica a falta de projetos voltados para o fortalecimento da corregedoria e de uma ouvidoria independente. Ele tem apontado para a necessidade de criação e fortalecimento de um Fórum Estadual de Segurança Pública, em que movimentos sociais e universidades tenham assento.

Arma engatilhada para o alvo errado

Faltam políticas claras de segurança pública. E aquelas conhecidas são duramente criticadas.

Uma delas é gratificar a polícia pela apreensão de drogas, o que não apenas incentiva a apreensão forjada das drogas, como também aumenta a violência nos mercados ilícitos, ao invés de diminuir.

Igualmente preocupante é o recente anúncio da portaria 930 da Secretaria de Defesa Social como uma investida no combate à criminalidade. A filosofia que está por trás da portaria 930 identifica como causa maior da criminalidade a impunidade. Embora seja verdade que a impunidade é um dos fatores que contribui para a criminalidade, alçá-la à condição de raiz da criminalidade é um erro. E não traçar estratégias sérias de prevenção da violência, articuladas com programas sociais, pode levar a um agravamento do problema.

A referida portaria acaba com um dos méritos do “Pacto pela Vida”, que era a criação da competência exclusiva das delegacias de polícia especializada de homicídios, passando a atribuição da investigação dos homicídios a ser dividida com as demais delegacias.

Foto: Eric Gomes / Mídia NINJA

Foto: Eric Gomes / Mídia NINJA

Segundo depoimento do presidente do Sindicato dos Policiais Civis em entrevista à Folha de São Paulo, Áureo Cisneiros, o índice de esclarecimentos dos crimes é atualmente de 20%. Isso significa que cerca de 80% dos crimes permanece sem autoria identificada.

Nesse contexto, distribuir a atribuição antes exclusiva de delegacias especializadas para outras delegacias, já sobrecarregadas com as próprias atribuições, é maquiar a ineficiência do governo com uma decisão que não tem capacidade de avançar na diminuição da criminalidade.

O governo precisa aprender que soluções eficazes e viáveis devem necessariamente ser discutidas com a sociedade civil. Medidas criadas às pressas em gabinetes de um governo que se esconde da opinião pública tem poucas chances de significar real enfrentamento à violência.

Porém, não é apenas da população que o governo tem se escondido. O mesmo tem ocorrido com as pressões da classe policial.

As greves no setor da polícia vinham sendo constantes (antes da questionável decisão do STF sobre greves) e com pautas que gozavam de amplo apoio da sociedade. Além do baixo efetivo policial e salários dos mais baixos do país, a total ausência de condições dignas de trabalho, que iam desde munição vencida a viaturas paradas, expuseram o estado de abandono em que a polícia se encontrava.

Em quem confiar?

Para piorar, com a formação policial estagnada e insuficiente para promover uma redefinição da cultura da instituição policial, vemos o crescimento de uma atuação alinhada com a violação dos direitos humanos, com atuação repressiva seletiva voltada para o público alvo da juventude negra da periferia, certamente a que mais morre.

Esse quadro é agravado por alguns cursos privados preparatórios para concursos para polícia que enaltecem a imagem do “Capitão Nascimento” e a atitude do “senta o dedo”, estimulando a violência e o arbítrio policial ilegais desde antes do ingresso na carreira.

Para uma polícia que já foi denunciada por racismo institucional e machismo e acusada de ser, ela mesma, uma das causas desses números alarmantes, a preocupação com a estagnação da formação não é desprezível.

Performance artística sobre feminicídio. Foto: Daniela SDV

Performance artística sobre feminicídio. Foto: Daniela SDV

Estupros e feminicídios: 497 denúncias de estupro de janeiro a março e 58 feminicídios

Dados divulgados pela Secretaria de Defesa Social apontam que foram registrados, até março deste ano, 497 denúncias por estupro.

Somente em janeiro e fevereiro, Pernambuco teve 58 feminicídios.

Crimes como o brutal assassinato de Mirella, uma fisioterapeuta de 27 anos, degolada pelo vizinho em um crime de ódio, expõem que o tema da violência não pode ser respondido apenas com repressão. E que a raiz da violência não pode ser reduzida à guerra entre traficantes.

Centenas de pessoas foram às ruas pedir celeridade nas investigações do caso de feminicídio que tirou a vida de Mirella. Foto: Julio Jacobina/DP

Centenas de pessoas foram às ruas pedir celeridade nas investigações do caso de feminicídio que tirou a vida de Mirella. Foto: Julio Jacobina/DP

Há muitas outras causas da explosão da violência que não estão sequer sendo consideradas na formulação das respostas apresentadas, como a portaria 930 ou o anúncio do investimento para aumento do efetivo.

Políticas de prevenção, pensadas a partir das especificidades de cada área de demanda, são urgentes. Entretanto, o governo não sinaliza tais medidas, com articulação entre as secretarias e a sociedade, que apontem para alguma solução do problema. Políticas de prevenção à violência contra a mulher e contra a população LGBT não são anunciadas, mesmo com toda a comoção de um estado que vê suas mulheres morrendo diariamente.

Do mesmo modo, não há anúncio de enfrentamento ao racismo institucional da própria polícia e de controle da violência policial.

Foto: Eric Gomes

Foto: Eric Gomes

Censura e repressão

No último dia 11, morreu o jovem Edvaldo da Silva Alves, de 21 anos, atingido a sangue frio por um policial militar.

Video: Autoria desconhecida.

Um vídeo que viralizou na internet mostrava o policial afirmando que iria atirar “primeiro naquele ali” pouco antes de disparar contra Edvaldo. Ele participava de um protesto que pedia justamente por maior segurança em sua cidade, Itambé, quando foi alvejado e arrastado até a caçamba da caminhonete da polícia. Edvaldo ficou cerca de 15 dias entre a vida e a morte.

Seu falecimento acabou por sepultar qualquer credibilidade das políticas de segurança pública em Pernambuco. O fato é que essa atuação violenta e repressora da polícia exatamente onde ela não é necessária é antes a regra do que a exceção.

No dia 21 de fevereiro, um protesto do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto junto à Companhia Estadual de Habitação, que desmarcou de última hora uma reunião agendada com o movimento, terminou em violenta repressão policial.

O advogado do MTST, Caio Loureiro Moura, foi detido ilegalmente, com flagrante violação de suas prerrogativas profissionais.

E a advogada Ana Cecília Gomes, que iria participar da reunião desmarcada, relata que teve uma arma apontada para si por policiais, em meio a ameaças e severas ofensas de teor machista: “Sai daqui se não vai levar bala”.

O relato de Ana Cecília vai ao encontro do que ocorreu com o jovem Edvaldo: uma polícia treinada para reprimir protestos com violência e sem qualquer respeito aos direitos dos cidadãos (no caso específico de Ana Cecília, em afronta às suas prerrogativas de advogada).

Por mais que esses casos nos provoquem revolta e indignação, uma vez que temos uma polícia ausente onde é necessária e ostensiva e violenta onde é desnecessária, responsabilizar os policiais individualmente pela violência policial é um erro.

O que está por trás desses excessos, desmandos e ilegalidades é a política de segurança desse governo.

Protesto contra o assassinato de Mario, de 14 anos, que foi morto com 3 tiros da PM. Foto: Raphael Oliveira / Mídia NINJA

Protesto contra o assassinato de Mario, de 14 anos, que foi morto com 3 tiros da PM. Foto: Raphael Oliveira / Mídia NINJA

Diante desse caos, a crise da gestão da segurança se transformou em um dos assuntos mais discutidos tanto na imprensa tradicional como na mídia alternativa de Pernambuco.

A resposta do governo foi então promover a censura ao tema. Em ofício da Secretaria de Defesa Social intitulado “Orientações sobre divulgação de resenhas diárias para imprensa”, o governo determinou que podem ser divulgadas notícias positivas, como “apreensões de armas e drogas, prisão de homicidas, traficantes, assaltantes”, mas que “está terminantemente proibido o repasse [dos dados da criminalidade] diretamente para a imprensa sem que ocorra antes os ajustes necessários”.

O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de Pernambuco (Sinjope), emitiu nota considerando que essas orientações atentavam contra a liberdade de imprensa.

A repressão e a censura preocupam por si sós. Mas tornam-se ainda mais graves quando percebemos que o governo de Pernambuco parece ser o único a não ver que a dimensão da violência ultrapassou há muito a possibilidade de ser escondida debaixo do tapete.

19/03/17 - Ocupação Carolina de Jesus, MSTS-PE. Nesta foto, cicatriz de bala de borracha disparda durante o protesto na sede da Secretaria de Habitação de Pernambuco. Neste dia, várias pessoas foram presas. Local: Integração do Barro, Recife-PE. Foto: Eric Gomes

19/03/17 – Ocupação Carolina de Jesus, MSTS-PE. Nesta foto, cicatriz de bala de borracha disparda durante o protesto na sede da Secretaria de Habitação de Pernambuco. Neste dia, várias pessoas foram presas. Local: Integração do Barro, Recife-PE. Foto: Eric Gomes / Mídia NINJA

Desconforto ou desgoverno?

O depoimento infeliz do governador Paulo Câmara, de que a situação estaria desconfortável, acabou gerando de fato um desconforto: o estado está sendo governado?

A impressão que a população tem é a de que a cadeira do chefe das polícias civil e militar, ocupada pelo governador do estado, está vacante.

Com decisões de gabinete incompetentes e ineficazes, a crise da segurança coloca para o governador o dever mais do que urgente de dialogar com a sociedade em busca de soluções, compartilhando a gestão da segurança e visando a uma política de segurança focada na prevenção da violência, no investimento na polícia aliado com o combate da própria violência policial, na revisão da política de repressão às drogas e no estímulo a programas de mediação de conflitos.

O governo precisa parar de esconder os números da violência. E precisa parar de se esconder.

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Desconforto! O protesto e performance vai acontecer na quarta-feira, dia 19, em frente do Palácio do Governo, às 18 horas. Já estão confirmadas as presenças de vários artistas, entre cantores e dançarinos, que apresentarão suas performances.

A organização do evento pede que todos compareçam vestidos de branco.

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ANEXO: ÍNTEGRA DO PEDIDO DE INFORMAÇÕES

Com base no artigo 5º, XXXIII da Constituição Federal e nos artigos 10, 11 e 12 da Lei n. 12.527/2011, Lei de Acesso à Informação, LIANA CIRNE LINS e CAROLINA VERGOLINO dirigem-se respeitosamente a Vossa Excelência, com o objetivo de apresentar PEDIDO DE INFORMAÇÕES ACERCA DA ESCALADA DA VIOLÊNCIA E DA INSEGURANÇA NO ESTADO DE PERNAMBUCO.

Tendo em vista posicionamento do Supremo Tribunal Federal de que a gestão de cada ente da federação é de responsabilidade do chefe do executivo, estando sob a chefia do governador do Estado as polícias militares e civis, e considerando apenas os NÚMEROS DE ÓBITOS EM JANEIRO E FEVEREIRO DE 2017, apresentamos o presente pedido de informações para obter resposta às seguintes perguntas:

1. Quais os nomes dos mortos, idade, local e circunstância do crime?

2. Qual é o sistema de comunicação interna do governo do estado relativo aos dados da violência?

3. Quais são as áreas da Região Metropolitana do Recife em que são maiores os índices de violência?

4. Quais são as regiões do Estado de Pernambuco em que são maiores os índices de violência?

5. Quantas das vítimas se enquadram como jovens nos termos da lei (15 a 29 anos)? Qual é o percentual considerando os números absolutos?

6. Quantas das vítimas são, de acordo com a categorização do IBGE, negras ou pardas? Qual é o percentual considerando os números absolutos?

7. Quantas das vítimas sofreram violência doméstica e feminicídio? Qual é o percentual considerando os números absolutos?

8. Recentemente, um episódio no município de Itambé revelou, através de vídeo, a atuação de um policial militar disparando contra o jovem Edvaldo Santos de forma premeditada, proposital e desnecessária, durante um protesto em que moradores pediam maior policiamento na região, que tem sofrido reiteradamente com assaltos. O episódio revelou aos pernambucanos o despreparo do policial para acompanhar manifestações e protestos. A assessoria de imprensa do governo anunciou tão-somente que havia sido instaurado processo administrativo contra o policial. Indagamos:

a. Por que o policial não foi suspenso das atividades, em vista de prova de sua conduta inapropriada (vídeo da ação)?

b. Qual é a instrução oficial da Polícia Militar de Pernambuco dada aos policiais que acompanham protestos e manifestações políticas?

9. Quantas das mortes foram provocadas por alguma ação policial? Qual é o percentual considerando os números absolutos?

10. Tendo em vista que a omissão de um problema não faz com que ele seja resolvido, indagamos: por que os dados relativos às mortes aqui solicitados não estão disponíveis a qualquer cidadão num portal apropriado? Por que os dados, disponibilizados na gestão Eduardo Campos, foram omitidos?