
Onda Nova, filme de 1983 censurado pela ditadura militar, é relançado nos cinemas neste 27 de março
Dirigido por Ícaro Martins e José Antonio Garcia, o longa-metragem acompanha a trajetória do Gayvotas Futebol Clube, um time de futebol feminino criado em 1983, ano em que o esporte foi regulamentado para mulheres no Brasil
Por Kaio Phelipe
Censurado durante a ditadura militar, o filme ‘Onda Nova’ (1983) finalmente chega aos cinemas nesta quarta-feira (27), mais de quatro décadas após seu polêmico sumiço das salas de exibição. Dirigido por Ícaro Martins e José Antonio Garcia, o longa retrata a história do Gayvotas Futebol Clube, um time de futebol feminino que desafiava preconceitos em 1983, mesmo ano em que a prática do esporte por mulheres foi regulamentada no Brasil. Com humor e crítica social, a obra ressurge como um registro histórico da resistência cultural e da luta por direitos durante um período de repressão.
Remasterizado em 4K, os negativos originais 35mm de som e imagem do filme foram preservados e digitalizados pela Cinemateca Brasileira e restaurados digitalmente para a Olympus Filmes, pela Aclara Produções Artísticas e a família de José Antonio Garcia, com a colaboração da Zumbi Post e da JLS Facilidades Sonoras. O cartaz do filme foi recriado por Helena Garcia, filha do cineasta José Antonio Garcia.
Exibido na 7ª Mostra de Cinema de São Paulo em 1983, o filme foi rapidamente proibido pela censura do regime militar. Onda Nova aborda questões como feminismo, gênero, sexualidade, aborto, nudez e drogas, tornando-se um manifesto poderoso contra a repressão.
No elenco, estão nomes como Caetano Veloso, Regina Casé, Vera Zimmermann, além de ídolos do Corinthians, como Walter Casagrande, Wladimir Rodrigues dos Santos e Olívio Pitta, que foram líderes da Democracia Corinthiana. Também podemos assistir o locutor Osmar Santos, a icônica voz das campanhas de mobilização política durante as Diretas Já.
Quarenta e dois anos depois de sua estreia, Onda Nova volta às telas e se transforma em um manifesto.

Acompanhe algumas palavras do diretor José Antonio Garcia, falecido em 2005, sobre o filme:
“Onda Nova é uma crônica bem-humorada e juvenil de um time de jogadoras de futebol, o Gayvotas Futebol Clube (que, aliás, é o subtítulo do filme). É um grupo de garotas dispostas a vencer preconceitos, compartilhar amizades, enfrentar desafios, concretizar sonhos e, sobretudo, se divertir. É um filme leve, descompromissado, mas também muito experimental, lúdico e anárquico. O plano de tomar a Boca e fazer um cinema que mostrasse a nossa cara, iniciado em O Olho Mágico do Amor, aqui é levado às últimas consequências.
[…]
O filme foi inteiro rodado assim, conquistando seu espaço, tomando o palco. Mas nem por isso deixávamos de sofrer com obstáculos de tudo quanto é tipo. Estávamos todos prontos para filmar cenas da Carla com o Chacrinha, por exemplo, e de repente recebemos a notícia de que o Velho Guerreiro havia adoecido gravemente. Tivemos que reescrever tudo e rodar apenas nos bastidores do programa, que, naquele período, passou a ser apresentado pelo Paulo Silvino. Outro problema: às vezes, era difícil achar uma brecha na agenda dos convidados especiais, muitos deles participando sem receber qualquer cachê.
Misturar artistas profissionais com amadores era necessário. Não teríamos tempo de treinar nossas atrizes para se tornarem boas jogadoras. Então, o Gayvotas era composto por algumas atrizes que não eram boleiras, algumas boleiras que não eram atrizes e outras que acumulavam ambos os talentos. Nenhum papel foi escrito especificamente para alguma atriz em especial – a única exceção, talvez, tenha sido a Vera Zimmerman.
Aliás, muito pelo contrário, o objetivo geral do filme era brincar com os papéis: os papéis que homens e mulheres supostamente exercem na sociedade. Como parte da nossa crítica se concentrava contra aqueles que impediam as mulheres de se expressarem no esporte, espalhamos ao longo de Onda Nova várias referências trocadas do que se acredita ser masculino ou feminino. A abertura, por exemplo, foi rodada no Parque do Ibirapuera. As roupas estendidas no varal evocavam a figura da lavadeira, associada à mulher, mas nossas atrizes tomam uma atitude dita masculina: picham nos panos os créditos do filme. Eu já havia usado essa ideia da pichação no Hoje Tem Futebol.
Outro exemplo: a família da personagem da Cristina Mutarelli. Quem faz a mãe controladora e autoritária dela, na verdade, é o ator Patrício Bisso. E, em todas as cenas, o pai fica sempre num canto, fazendo tricô. Inversamente, a mãe de uma outra jogadora é chofer de táxi, uma profissão considerada masculina (e que eu havia explorado em Marilyn Tupi). Essa personagem, vivida pela Cida Moreyra, dá total apoio à decisão da filha de jogar futebol.
[…]
A gente fez questão de mostrar que, assim como havia garotas heterossexuais jogando futebol, também havia homossexuais, sem nenhum problema ou constrangimento. Eram meninas superfemininas. Uma delas é a filha da taxista, que, brincando com a velha associação entre homens, carros e sexo, pega emprestado o fusca da mãe para poder transar com a namorada no banco de trás. Há também outro casal homossexual: os dois namorados da personagem da Cristina Mutarelli. Próximo do final do filme, eles deixam de disputá-la e protagonizam entre si uma cena de amor.
Outro tabu que quebramos era o do nu masculino. Há um machismo que até hoje prega facilmente o nu da mulher no cinema, mas nunca o do homem. Nós o desafiamos de uma maneira muito naturalista: uma das meninas namorava um jogador de basquete e invadia o vestiário dele após um treino. As garotas do Gayvotas também apareciam peladas. O Onda Nova carregava um comportamento diante da nudez que era muito típico da minha geração. Aliás, hasteava várias outras bandeiras da nossa juventude. Ele fala muito sobre ir contra a opinião de seus pais e fazer o que se quer – pode ser futebol, no caso delas, ou cinema, no meu, ou seja lá o que for.
Está lá tudo aquilo pelo que a gente brigava: liberação sexual, das drogas, do aborto… Uma das personagens, por exemplo, pede francamente para que o jogador Casagrande tire sua virgindade. Em outra cena, as meninas dividem um baseado e, mesmo alterada, a filha da taxista decide pegar o carro da mãe emprestado novamente, desta vez para tentar levantar dinheiro para o aborto da Batata, que descobriu estar grávida.
Esta ideia foi uma daquelas que surgiram na minha cabeça quando as filmagens já estavam rolando e que o Kiko adorou. Ela era a premissa para que brincássemos com a figura do Caetano Veloso: ele traria uma outra mulher ao táxi e, enquanto dava uns amassos, ia pedindo para a motorista: vai para o Viaduto do Chá, agora para a Liberdade, etc. E a menina, ainda chapada com a maconha, não consegue achar o caminho para lugar algum. O Caetano não se importa: ele só quer um tempo e um espaço para poder namorar em paz.
O Caetano era um símbolo da nossa geração e adorou a oportunidade. Estava fazendo um show em São Paulo e veio participar da filmagem na maior boa vontade. Nem recebeu cachê. Quem intermediou o convite foi a Vera Zimmerman, para quem ele escrevera aquela música Vera Gata. Foi por causa dessa canção, até, que eu a quis no filme. Sabia que ela era uma excelente peladeira e criei uma personagem só para ela. O problema é que todos me diziam que ela estava na Bahia e eu não tinha como entrar em contato com ela. Até que, um dia, acidentalmente, dei de cara com a Vera no Pirandello, em São Paulo.
Ela tinha acabado de voltar da Europa, onde tinha encenado Macunaíma com o Antunes Filho. Estava com uma amiga, Lúcia Braga, que também jogava futebol, e acabaram as duas entrando no filme.
Onda Nova ainda teve a participação da Regina Casé, bem no comecinho, como uma amiga da Tânia que assiste com ela ao jogo do Gayvotas contra o Corinthians – as garotas vestidas de homem, os homens vestidos de mulher, com peruca e saia. E também a do Osmar Santos, que nós chamamos só na pós-produção, para narrar o jogo contra a seleção feminina italiana. Ele foi uma das muitas pessoas do universo esportivo que se ligaram no filme e adoraram a oportunidade de lutar contra o estigma do futebol feminino. Até então, um time como o da minha prima, no Corinthians, só treinava pela diversão e pelo exercício, sem poder participar de campeonatos, porque a CBF não permitia. Não sei se o filme ajudou, mas fico feliz que, algum tempo depois do seu lançamento, essa proibição arcaica foi derrubada.
[…]
A censura, porém, foi muito menos leniente. Pagamos todos os pecados que foram ignorados em O Olho Mágico do Amor. Para piorar, Onda Nova era tão experimental que deixou o mercado exibidor perplexo. Eles não sabiam em que tipo de cinema encaixá-lo. Não sabiam se era um filme popular, comercial ou de arte. Não havia, como hoje, uma rede consolidada de salas que abrigasse um cinema independente e questionador. No final, estreamos em apenas dois cinemas.
A crítica também não colaborou muito. Houve quem adorasse o filme, mas quem o taxasse como o pior do século XX. Digo que (…) levei duas porradas que alteraram minha vida: a da moto e a da crítica. Talvez tenhamos sido superestimados com O Olho Mágico do Amor e os jornalistas não admitiram que aqueles dois garotos que haviam achado seu caminho na estreia se desviassem e tentassem algo tão provocador. Era um filme duro de engolir e sabíamos disso.
Assim como o acidente de moto mudou minha perspectiva de vida, tomar esse balde de água gelada também me ensinou muito. São coisas que a gente aprende. É claro que eu e o Kiko sentíamos a pressão de rodar o nosso segundo filme, mas nada além do que seria natural para qualquer pessoa que deseja melhorar e se desenvolver. Fazer cinema é como beijar, como transar, como ter um filho – você sempre quer fazer melhor do que antes. Quer que a segunda experiência seja mais emocionante e reconhecida que a primeira. Ao mesmo tempo, não focávamos nossa preocupação na reação do espectador ou da crítica especializada. Artista nenhum pensa assim. O que nos interessa mesmo é instigar, provocar, desafiar.
O tombo também foi pior porque, na proporção de que nossa verba para Onda Nova foi maior, o prejuízo também foi. O filme rendeu muito pouco, e não digo apenas do ponto de vista financeiro. Ele levantava uma série de questões que nunca ganharam o espaço do debate público porque ele foi pouco e malvisto. Até hoje brinco dizendo que Onda Nova é o meu filme maldito, mas tenho enorme orgulho e carinho por ele. Certa vez, encontrei o diretor Walter Carvalho numa festa, e ele não me conhece, mas eu o escutei numa rodinha de amigos dizendo: “nossa, o Canal Brasil é fantástico, esses dias eu vi um filme lá… um tal de Nova Onda, ou Onda Nova… Não sei… Eu adorei, achei genial!” É bom saber que, mesmo em outra época, mesmo quando a juventude e o cinema já mudaram tanto, o filme ainda encontra reconhecimento.”
Depoimento de José Antonio Garcia tirado de “José Antônio Garcia – Em Busca da Alma Feminina” de Marcel Nadale (São Paulo: IMPRENSA OFICIAL, 2008)