Por Mariana Fagundes-Ausani, para Cobertura Colaborativa #NECParis2024

A cerimônia de abertura dos Jogos Paralímpicos de Paris destaca, mais uma vez, os esforços do Estado francês em se alinhar a um discurso de diversidade e inclusão e de combate a preconceitos. Contudo, viver na França implica enfrentar um cotidiano traçado por profundas ambiguidades, especialmente quando se é uma pessoa racializada – termo que engloba pretos e pardos, mas também grupos de indivíduos que, ainda que sejam brancos, vêm de países pobres ou em desenvolvimento. A discriminação persiste em muitos aspectos da vida dessas populações, como moradia, educação, emprego e sistema de justiça, levando-as a se deparar com desafios relacionados ao racismo sistêmico, à desigualdade econômica e à injustiça social.

Para entender esse contexto, a Mídia NINJA conversou com Régine Komokoli-Nakoafio, vereadora do departamento de Ille-et-Vilaine, no norte do país. Ela chegou à França de maneira ilegal, sem ter um visto e os documentos necessários para cruzar a fronteira regularmente, e tornou-se a primeira mulher com essa trajetória a entrar para a política na República Francesa. Originária da África Central, Régine é ativista antirracista, afro ecologista e feminista e sua atuação é voltada para populações que moram em bairros da classe trabalhadora na França. Ela reforça que a presença de mais de uma centena de representantes eleitos no Parlamento que defendem ideias racistas não é simplesmente um sintoma do racismo, mas um indicador de como essas tendências estão arraigadas no seio da sociedade. Entretanto, a vereadora comemora as mobilizações de setores progressistas que aconteceram recentemente no país e conseguiram barrar a ascensão ao poder de políticos que sustentam políticas anti-imigração e discursos preconceituosos. “Uma outra história é possível”, afirma.

Fotos encaminhadas por Komokoli para utilização da NINJA. | Foto: Arquivo Pessoal

Leia abaixo a entrevista na íntegra:

NINJA: Na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de 2024, a presença de uma sociedade francesa que foge dos estereótipos brancos, com cabelos e olhos claros, falando baixo e mexendo pouco as mãos, surpreendeu espectadores de todo o mundo. Seria esse um protesto contra o endurecimento das políticas racistas, com as quais o próprio governo atual mostra se alinhar?

Komokoli-Nakoafio: Talvez seja uma forma de falar sobre a França de hoje, e não acho que os organizadores, que estavam preparando o evento há 6 meses, puderam colocar em prática um plano B após as eleições. A organização foi monitorada de perto pelo Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos e pelo governo francês, e isso não foi feito de improviso.

A França é uma sociedade fragmentada. Isso é verdade. Por um lado, há um núcleo de ideologia de extrema-direita que atrai os membros esquecidos da sociedade: aposentados, populações rurais e também todos aqueles que se sentem à margem. De outro, há uma França mais diversificada, multiétnica e multicultural. Não necessariamente com um discurso político consciente, mas com valores de abertura. Foi para essa segunda parte da sociedade, viva e atuante, que o desfile se voltou. 

A isso se acrescenta ainda uma espécie de intenção messiânica, desde a Revolução Francesa, de promover ideias de igualdade. 

Mas sejamos honestos, pelo menos na França, esse desfile não foi exatamente revolucionário! Eu diria que essas expressões artísticas, que são incomuns em outros lugares, fazem parte dos principais eventos na França.

NINJA: A ideia da trégua olímpica e dos Jogos como um espaço neutro para conflitos internacionais tenta esconder as estruturas de exploração e colonização apoiadas pelos países que, como a França, são responsáveis por esses eventos esportivos. Como, nas Olimpíadas de Paris, a retórica que promove uma Olimpíada inclusiva esconde o racismo estrutural enraizado na cultura do país?

Komokoli-Nakoafio: Não tenho certeza que exista tanto “racismo estrutural enraizado na cultura do país”, caso contrário, eu não teria sido eleita. Meu eleitorado é composto, em sua maioria, por franceses brancos.

Devo salientar que cheguei do Centro da África há 20 anos. Eu não sabia nada sobre a sociedade francesa e meu francês era muito básico.

Mas, sim, temos muitos comportamentos racistas, isso é inegável.

Há discriminação em processos de contratação, ausência de pessoas racializadas em profissões e em cargos representativos no jornalismo, na indústria cinematográfica, na política… É um racismo cotidiano.

Os empregos com salários mais baixos são deixados para mulheres de diversas origens. E, é claro, há as relações complicadas entre os jovens de origens multiétnicas e a polícia. Por último, mas não menos importante, está o destino dos imigrantes sem documentos. Eles geralmente têm de viver nas ruas e trabalhar em condições análogas à escravidão.

Agora, também temos de reconhecer que a França é um país em plena transformação. 

No que diz respeito às populações das antigas colônias (norte, oeste e centro da África), estamos agora na terceira geração desde o fim dos períodos de colonização. Outras levas dessas populações vieram desde então para fornecer mão de obra para a indústria francesa ou para escapar da guerra e da pobreza, como foi o meu caso.

Parte dessa população fez um grande progresso em direção à integração. Eles fazem parte da classe média, seus filhos frequentam a universidade e, para toda uma parte da população, isso é perfeitamente normal.

Também não devemos ignorar a importância dos casais mistos que têm filhos. São muitas pessoas. Ou essa parte da população é total, ou parcialmente de origem diversa. Ou pode haver outras pessoas que veem essa população da África ou de outros lugares diariamente e acham isso perfeitamente normal. Isso também é uma realidade.

NINJA: Quais são as estratégias possíveis para aumentar a educação e a sensibilização sobre os perigos do racismo e da exclusão?

Komokoli-Nakoafio: A primeira coisa a destacar é que o discurso político da esquerda sobre esse assunto é totalmente inexistente. A maneira de pensar da esquerda francesa está presa ao século passado. Portanto, precisamos urgentemente reconstruir um discurso e uma narrativa sobre a realidade da diversidade na França.

Essa diversidade é produto de uma longa história (a 1ª Constituição do país, de 1793, concedeu a nacionalidade a qualquer pessoa que tivesse demonstrado sua utilidade para a 1ª República) e também é um ativo para um país que, no mínimo, sempre se beneficiou de contribuições externas.

Precisamos analisar o “porquê” da situação em que o país se encontra.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a França foi construída com base em um contrato. Havia uma forte presença do Estado, mas também estruturas sociais coletivas muito fortes: seguridade social, educação, saúde, serviços públicos para todos, aposentadoria. A desregulamentação capitalista alterou muito essas redes de segurança social. Isso deixou muitas pessoas à margem, inclusive parcelas da população branca, composta de pessoas que não são muito politizadas e que foram seduzidas por ideias simplistas.

A melhor estratégia é, portanto, redescobrir um discurso político positivo, criativo, poderoso, inclusivo e otimista… para restaurar o papel regulador e de distribuição do Estado. A educação e a conscientização virão em seguida.

Precisamos desse projeto unificador. 

NINJA: Em termos de representatividade, como o fato de ter pessoas como Aya Nakamura como símbolo da França e dos franceses e francesas afeta as pessoas de origem estrangeira que vivem no país?

Komokoli-Nakoafio: Acho que foi um motivo de orgulho, ver Aya Nakamura encerrar seu show com a Guarda Republicana, o grupo musical do exército francês. Obviamente, há uma interpretação política.

Há também todo um debate sobre a evolução da língua francesa… a única língua do mundo que é objeto de um debate tão apaixonado. Aya inventa palavras e frases. Em seu nível, ela enriquece o idioma. E não devemos esquecer que, assim como no caso do português, é fora da França, na África, que há mais falantes. O futuro do idioma pode estar em outro lugar… na África.

E então, após os Jogos, vemos um resumo dos medalhistas. Uma equipe de judô composta 100% por pessoas de origens diversas, no atletismo, nos esportes coletivos, etc. Percebemos que, sem mulheres e homens de múltiplas origens, a França teria sido rebaixada para a parte inferior da tabela.

Mas essa é a receita mágica para combater a extrema-direita? É claro que não. É, porém, uma alavanca entre outras para demonstrar que a França da década de 2020 nunca será tão forte quanto quando combinar todos os seus talentos.

Isso é algo que as populações estrangeiras não podem perder de vista.

NINJA: A extrema-direita e as alas mais conservadoras da sociedade não viram com bons olhos a cerimônia. No Brasil, padres e pastores ficaram indignados, e o YouTube do país está repleto de vídeos que tentam demonstrar que o evento foi, de fato, um ritual satânico. Que mensagem a França está enviando ao mundo com a forma como está conduzindo os Jogos Olímpicos e Paralímpicos? E o que ela está dizendo sobre si mesma?

Komokoli-Nakoafio: Eu me pergunto se não havia um desejo no inconsciente coletivo francês de torcer o nariz para todos os ultrarreligiosos, evangélicos, fundamentalistas muçulmanos, fundamentalistas católicos… E de mostrar que a laicidade francesa é capaz de afirmar e exibir sua liberdade de pensamento e sua recusa a qualquer pressão religiosa às vezes vista como obscurantista.

Embora estejamos a 250 anos de distância da Revolução Francesa, seu espírito permeia a mentalidade francesa. A cabeça decepada de Maria Antonieta, esposa de Luís XVI, foi recebida como parte de nossa história, e muitos dos locais em Paris onde ocorrem os eventos olímpicos estão impregnados de uma história que também pertence à humanidade.

O que a cerimônia queria dizer era algo que os franceses carregam dentro de si. Eles são um povo especial que, apesar de seu conservadorismo, também pode liderar o mundo em questões sociais.

O fato de os evangélicos e a extrema-direita, que interpretaram falsamente uma cena bíblica (na verdade, ela foi inspirada em uma pintura relacionada à mitologia grega antiga), estarem chocados, é um direito deles. O fato de eles considerarem a representação como satânica faz as pessoas rirem bastante na França.

A arte é um lugar de liberdade. Ela não está lá para alimentar emoções e debates?