
‘O Último Episódio’ é o ‘Stranger Things’ mineiro que nasceu no Brasil dos anos 90
Entre nostalgia, humor e romance, o longa celebra a juventude analógica marcada por fitas, desenhos e descobertas
Por Hyader Epaminondas
É engraçado como o filme inicia rebobinando sua própria narrativa para dois meses antes dos acontecimentos, guiado por uma narração em primeira pessoa do protagonista de 13 anos, que revela a necessidade de acumular coragem até a hora decisiva para retomar a sua história.
“O Último Episódio” é uma viagem ao imaginário coletivo da infância de Maurílio Martins, um mergulho direto em Contagem, Minas Gerais, no início dos anos 90. Cada rua, escola e banca de jornal recriada no longa carrega fragmentos das lembranças pessoais do diretor e, ao mesmo tempo, se abre para o público como memória compartilhada. Essa costura entre o íntimo e o coletivo transforma a narrativa em um retrato vívido de uma época e de uma cultura que hoje persiste apenas nas fitas de VHS.
Por um certo ponto de vista, o filme pode ser lido como uma versão mineira de “Stranger Things”, e isso não deve ser entendido como demérito, mas como reconhecimento da força com que a produção traduz um fenômeno global para uma experiência local. Enquanto a série americana se ancora em bicicletas, fliperamas e no imaginário suburbano dos Estados Unidos dos anos 80, aqui a infância é reconstruída a partir do cotidiano da periferia de Contagem dos anos 90: o cheiro de pão de queijo saindo do forno, o gosto doce do doce de leite, a arquitetura das casas e as ruas que moldam a vida da cidade, transformando cada detalhe em uma afirmação de identidade.
A atenção à direção de arte, aos figurinos e aos objetos da época, incluindo a banca de jornal do bairro, que atualmente se assemelha a um fóssil urbano, cria uma textura tão concreta que somos transportados para dentro de um antigo álbum de fotos, com capa dura e folhas de plástico amarelado em movimento, evocando lembranças e sensações que atravessam gerações.
Antes da internet e do streaming, como nem todo mundo tinha acesso à TV a cabo, assistir a desenhos era um verdadeiro ritual analógico, tanto nas manhãs quanto nos finais da tarde da televisão aberta. Sentar-se diante da TV para ver o episódio inédito era uma sensação de primeira vez, um instante mágico que se repetia a cada semana.
Lembro como se fosse ontem de correr da escola para assistir a “Dragon Ball Z” na Band, mas nada se comparava a deixar o VHS gravando “Os Cavaleiros do Zodíaco” como se minha vida dependesse disso, posicionando a fita com precisão cirúrgica, garantindo que nem um segundo da saga fosse perdido, como se estivesse capturando fragmentos do próprio cosmo.
“O Último Episódio” resgata uma infância marcada pela cadência da espera, pelo tempo de sonhar com o próximo gibi, a próxima fita ou a próxima tarde na rua. Antes da era digital, cada descoberta tinha peso, cada aventura se transformava em lembrança duradoura. Hoje, diante do fluxo incessante de conteúdo, esse “tempo da espera” se perdeu e, junto dele, a experiência de uma vida menos marcada pelo consumo acelerado.
Entre fitas rebobinadas e o frio na barriga do amor
No centro do filme está Erik, um garoto de treze anos que vive o primeiro amor com toda a intensidade e timidez que a idade permite, enquanto vive aventuras no seu bairro com seus dois melhores amigos, Cristão e Cassinho. Sua paixão por Sheila, cheia de hesitações e pequenos gestos improvisados, mas estrategicamente calculados. Para impressioná-la, ele afirma ter em casa a lendária fita com o último episódio de “Caverna do Dragão”, e a mentira inocente se transforma em uma busca repleta de imaginação.
Além do trio de amigos, o bairro Jardim Laguna ganha um protagonismo quase histórico quando colocado em justaposição com imagens de arquivo que resgatam o passado com sensibilidade ao integrar o núcleo da história principal sobre memórias. Há ainda a participação especial do diretor, que reforça a dimensão pessoal e íntima da produção, além de praticar explicitamente o culto à fotografia impressa, elemento muito característico da época, marcada pela efervescência e pela instabilidade econômica da era Collor e seus preços extremamente voláteis.
Ao longo do filme, tudo carrega um ar artesanal: cada gesto parece feito à mão, em contraste com a impessoalidade do digital. Esse cuidado atinge seu ponto alto na animação do “último episódio”, que, ao se materializar nesse processo manual, conecta a uma experiência estética que é ao mesmo tempo nostálgica e única, ao usar bonequinhos de papel.
O conflito, tão simples e ao mesmo tempo tão profundo, mostra como o primeiro amor se constrói entre a fantasia e a realidade, entre o desejo e o medo de errar. Há algo de “Caverna do Dragão” nesse percurso, começando já pelo nome do protagonista: Erik, assim como o escudeiro medroso da animação, parece chamado para essa jornada como se o próprio Mestre dos Magos propusesse uma aventura quase impossível de se realizar, cheia de enigmas e incertezas, mas cujo verdadeiro valor está na jornada, e o filme deixa isso explícito.
Assim como na série animada, onde as respostas nunca vinham prontas, Erik precisa inventar coragem, decifrar sentimentos e se arriscar no desconhecido com delicadeza, mesmo com frio na barriga, e a amizade do trio só se fortalece no percurso com a descoberta de alguns desafios fora da caixa.
De repente, no entrelaçar do passado do pai de Erik, o filme ganha outra camada: já não é só a procura por um episódio perdido de desenho, mas um drama sobre a memória e a celebração da infância mineira, da estética noventista que marcou o diretor e um ensaio sobre como lembranças aparentemente banais, como uma fita de VHS ou um desenho na TV, permanecem para sempre com seus significantes intactos.
Ao evocar “Caverna do Dragão” como parte do argumento, “O Último Episódio” é daqueles filmes de amadurecimento que abordam coragem, imaginação e descoberta, enquanto, devido à nostalgia implícita das suas referências, nos lembra que há beleza em cada gesto cotidiano, pois é nesse território de lembranças que o cinema encontra a sua força mais sincera, da própria infância refletida na tela.