O truque de Bolsonaro para dizer que cuida do pequeno produtor rural
Em primeiro lugar, a entrega de títulos precisa estar acompanhada de uma política de reforma agrária
Por Eduardo Geraque/InfoAmazonia
Na largada para o segundo turno, a entrega de títulos de terra ganhou destaque entre as promessas de campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição. Seu programa no horário eleitoral de 7 de outubro anuncia: “no próximo governo, o presidente Bolsonaro vai dar títulos de terra para todos os assentados do Brasil e vai aumentar o crédito para quem quer produzir e crescer”. O tema também dominou as discussões focadas em meio ambiente no WhatsApp e no Telegram. Nas listas de supostos feitos do governo, está lá: “mais de 400.000 (400 mil) títulos de propriedade rural (reforma agrária)”.
Em grupos públicos, monitorados pelo projeto Mentira Tem Preço, vídeos e links repercutiram as campanhas do próprio presidente pelo suposto feito e os de seus ex-ministros, como Tereza Cristina (Agricultura), eleita senadora por Mato Grosso do Sul, e até de Tarcísio de Freitas (Infraestrutura), carioca candidato a governador por São Paulo. Mas essa reforma agrária não aconteceu. Na Amazônia Legal, a entrega expressa de títulos apareceu nas campanhas para governador, como a da candidata não eleita Teresa Surita (MDB-RR), “a favor do agro em todos os sentidos”, que defendeu que título de terra precisa ser rápido.
O discurso oficial a favor do pequeno produtor começa a ruir quando se analisa com mais profundidade o que não aconteceu na reforma agrária desde que Bolsonaro assumiu o poder, afirmam especialistas ouvidos para esta reportagem.
“É um governo abertamente contrário às demandas históricas de acesso à terra e contra os direitos territoriais de povos indígenas e comunidades tradicionais. Isso é diferente, pois os governos civis desde a Nova República foram levados a negociar, dialogar com as demandas sociais do campo”, diz Sérgio Sauer, professor da UnB (Universidade de Brasília), sinalizando como será mais difícil, em um eventual segundo governo Bolsonaro, que as demandas das comunidades tradicionais sejam atendidas.
Em primeiro lugar, a entrega de títulos precisa estar acompanhada de uma política de reforma agrária, um plano que invista em infraestrutura nos assentamentos, na demarcação de terras indígenas e no reconhecimento de territórios quilombolas.
Como fazemos o monitoramento: O projeto Mentira Tem Preço, realizado desde 2021 pelo InfoAmazonia e pela produtora FALA, monitora e investiga desinformação socioambiental. Nas eleições de 2022, checamos diariamente os discursos no horário eleitoral de todos os candidatos a governador na Amazônia Legal. Também monitoramos, a partir de palavras-chave relacionadas a justiça social e meio ambiente, desinformação sobre a Amazônia nas redes sociais, em grupos públicos de aplicativos de mensagem e em plataformas.
De janeiro de 2019 a agosto de 2022, a gestão Bolsonaro entregou 404.933 documentos de titulação, segundo o Incra (Instituto Nacional da Reforma Agrária), contra 332.818 nos governos de Lula e Dilma. Mas também reduziu a quase zero o orçamento para reforma agrária em 2021. Boa parte desses títulos foi emitida pelo atual governo em estados da região Norte entre 2019 e 2022, segundo dados do Incra. Os campeões foram Pará (92.590), Rondônia (18.919), Amazonas (10.144), Acre (6.170), Amapá (3.429) , e Roraima (2.543).
Também em 2021 houve um enxugamento de R$ 2,5 bilhões na subvenção econômica ao crédito rural. O Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) perdeu R$ 1,35 bilhão. Pela proposta original do governo, o programa receberia R$ 3,8 bilhões neste ano. O corte na agricultura familiar foi de 35%.
O governo Bolsonaro tampouco demarcou terras indígenas ou quilombolas em quatro anos de governo. “Essa política do governo não trouxe qualquer avanço para a política agrária. Pelo contrário: paralisou a criação de novos assentamentos no Brasil”, diz Andréia Silvério, da coordenação nacional da CPT (Comissão Pastoral da Terra).
Por que os títulos individuais são um risco
Em áreas atravessadas por interesses de grandes mineradoras, madeireiras, fazendeiros e da especulação imobiliária —como ocorre em grande parte dos assentamentos na Amazônia Legal—, a emissão de títulos individuais em assentamentos coletivos não apenas libera parte do solo amazônico para o mercado como pode significar a desestruturação das dinâmicas sociais em curso, aponta a especialista.
Essa política desprotege as terras frente aos grandes interesses econômicos e desarticula as dinâmicas territoriais e sócio produtivas baseadas no uso comum de porções dos territórios pelas famílias, aponta a pesquisadora Julianna Malerba, da ONG FASE e organizadora da série “Direito à Terra e ao Território”. “A entrega de títulos individuais em assentamentos coletivos permite que essas terras, que seriam mantidas como inalienáveis pela titulação coletiva, possam ser passíveis de alienação”, completa.
Esse ponto foi exaltado pela ex-ministra Tereza Cristina. “As famílias agora podem vender, passar para seus filhos e produzir melhor [nas áreas tituladas]”, comemorou ela em um evento de entrega de títulos de terras em Mato Grosso do Sul em março. Essa foi apenas uma das vezes em que a senadora eleita pelo próprio Mato Grosso do Sul elogiou o trabalho feito pelo Incra.
Como um exemplo dessa questão de tratar a posse da terra como individual e não coletiva, Malerba cita o Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) da Gleba Lago Grande, que considera emblemático. Localizada no oeste do Pará, entre os rios Amazonas e Arapiuns, a região engloba 154 comunidades e mais de 6.600 famílias em uma área de 250 mil hectares.
Na Gleba, populações indígenas e ribeirinhas trabalham em atividades extrativistas e na agricultura familiar. Como a região tem um solo rico em minérios, como a bauxita, também existem empresas operando na região.
O local foi definido como um assentamento ambientalmente diferenciado, por causa da biodiversidade e das comunidades que vivem na região. Por isso, lá a posse da terra deveria ser tratada como coletiva, e não individual, como quer o governo. O imbróglio é antigo e não está resolvido.
Título provisório não muda a vida do pequeno produtor
Outro problema dessa titulação expressa de terras é que os títulos entregues na gestão Bolsonaro são provisórios ou apenas renovação de documentos emitidos em anos anteriores, afirmam especialistas. Na prática, o fato de os produtores rurais terem esse papel em mãos não permite, por exemplo, viabilizar empréstimos bancários nem comercializar a terra.
“O governo Bolsonaro mistura os títulos provisórios em assentamentos e fala como se fosse tudo definitivo. Os provisórios são apenas autorizações de uso, um tipo de reconhecimento de que a posse é legítima. Mas isso não muda a vida dos produtores”, explica Raoni Rajão, professor da Universidade Federal de Minas Gerais.
Um levantamento feito pela iniciativa Amazônia 2030 mostra que no governo Bolsonaro (entre 2019 e 2021), 8.422 Certidões de Reconhecimento de Ocupação (CRO), espécie de títulos provisórios, foram emitidos em glebas públicas federais na Amazônia Legal fora de projetos de assentamento de reforma agrária. No mesmo período, 1.307 títulos definitivos foram emitidos nessa região.
Uma das utilidades dessa modalidade de titulação provisória, diz Silvério, é arrecadar impostos com a cobrança dos títulos. “Além de não investir na criação de novos assentamentos, o Estado irá arrecadar com a cobrança por esses títulos de propriedade”, afirma.
“Esses títulos provisórios, portanto, sem o valor atribuído nas propagandas eleitorais, dão esse volume de trabalho ao Incra, mas são apenas um pedaço de papel, que se torna uma justificativa legal para a apropriação de lotes nos projetos de assentamentos”, completa Sauer.
Ainda de acordo com a versão exaltada pelo presidente, o MST —que não integrou nenhum governo brasileiro até o momento—, é um fator chave para entender por que seu governo fez mais pelo produtor rural. “O MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] perdeu muita força também por causa da titulação. Eles não davam título e mantinham o povo escravizado. Em três anos, entregamos mais títulos do que de 2000 pra cá”, disse o presidente Jair Bolsonaro. Não adiantou o MST desmentir. Mensagens compartilhando esta versão alcançaram os grupos públicos de aplicativos.
Para esses especialistas, o que houve nos últimos anos no país deve ser classificado como um retrocesso. “Bolsonaro se elegeu prometendo ‘nenhum hectare a mais de terra para índio’ e ‘com o MST não tem diálogo’. Os assentamentos foram “praticamente zerados” e o orçamento do Incra e das políticas fundiárias foi desidratado, afirma o especialista. “O desmonte começou em 2016 ou mesmo antes, com quedas no número de assentamentos e menor número de projetos executados via desapropriação”, diz Sauer.
Essa política deu continuidade à do governo de Michel Temer (MDB), no qual o Ministério do Desenvolvimento Agrário foi relegado ao status de secretaria, o que impactou a execução de políticas e programas fundiários. No segundo turno das eleições de 2022, Temer anunciou apoio a Bolsonaro para, dias depois, desistir de apoiá-lo. Ele disse que vai apoiar quem “defender a democracia, cumprir rigorosamente a Constituição, promover a pacificação, manter as reformas já realizadas no meu governo e propor ao Congresso Nacional as reformas que já estão na agenda do país”.
Essa reportagem faz parte do projeto Mentira Tem Preço – especial de eleições, realizado por InfoAmazonia em parceria com a produtora Fala. A iniciativa é parte do Consórcio de Organizações da Sociedade Civil, Agências de Checagem e de Jornalismo Independente para o Combate à Desinformação Socioambiental. Também integram a iniciativa o Observatório do Clima (Fakebook), O Eco, A Pública, Repórter Brasil e Aos Fatos.
A autorização para republicação do conteúdo se dá mediante publicação na íntegra, o projeto Mentira Tem Preço não se responsabiliza por alterações no conteúdo feitas por terceiros.