O território agroecológico da Borborema não é lugar de parques eólicos. Nem de milhos transgênicos
13ª Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia de Polo de Borborema, organizada pelo Movimento de Mulheres do Polo, levou cerca de quatro mil agricultoras dos municípios do Polo para as ruas centrais de Solânea.
Por Verônica Pragana – Núcleo de comunicação da AS-PTA
O vento está famoso
aqui nessa região.
Todo mundo quer o vento
para sua produção.
Os versos, escritos pela mão de quem cultiva a terra e protege as sementes crioulas, retratam o conflito de interesses que se instaurou em todo o Semiárido brasileiro e que tem o vento como fio condutor.
Nesse caso, a inspiração do poeta Euzébio Cavalcanti – que também é cantador, compositor, comunicador popular, agricultor assentado da reforma agrária, guardião das sementes da Paixão e liderança sindical – é o chão onde pisa, no território agroecológico da Borborema.
No município de Euzébio, em Remígio, e em mais 13 que compõem o Polo da Borborema, as famílias agricultoras agroecológicas enfrentam e organizam a resistência a duas grandes ameaças que envolvem os ventos: as indústrias de geração de energia renovável e as sementes de milho contaminadas pela transgenia.
Na primeira semana de maio, o Polo da Borborema anunciou publicamente a sua contraposição a projetos e ações chanceladas e apoiadas pelos poderes públicos nos diferentes níveis.
No dia 2, logo após ao Dia Internacional do Trabalhador, a 13ª Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia, organizada pelo Movimento de Mulheres do Polo, levou cerca de quatro mil agricultoras dos municípios do Polo para as ruas centrais de Solânea.
A Marcha foi um grito em alto e bom tom das mulheres do território que estão bastante conscientes dos estragos que as indústrias energéticas provocam nas comunidades rurais. Desde que constatou um anemômetro no território, em 2018, o Polo da Borborema busca informações sobre os impactos dos parques eólicos e das usinas solares em comunidades já afetadas por esses empreendimentos nos estados de Pernambuco e Rio Grande do Norte.
Cientes dos danos causados, o Polo e a ASPTA, organização que assessora o coletivo sindical, desenvolveram a campanha ‘Borborema Agroecológica não é lugar de parques eólicos’ e o movimento de mulheres assumiu esse enfrentamento como tema da 13ª Marcha.
“Nós, que lutamos pela nossa terra, não podemos entregá-la para as empresas que fazem aliança com o Estado. O discurso de desenvolvimento que fazem não é verdade. Esse modelo de produção de energia provoca muitos impactos sociais e ambientais. Diminui a produção da agricultura familiar, põe as mulheres em situação de vulnerabilidade social com as empresas trazendo mão de obra masculina de fora. A Marcha das Mulheres só iniciou o processo de resistência que o Polo assume como a contraposição”, sentencia Roselita Victor, da coordenação política do Polo da Borborema.
O jovem agricultor e criador de ovelhas de uma raça nativa e adaptada às condições ecológicas do semiárido, Mateus Manassés, complementa os argumentos de Rose: “Do ponto de vista da juventude rural, os contratos com as empresas de geração de energia tiram de nós a possibilidade de herdar as terras de nossos pais e avós. A propriedade na qual vivo e produzo, hoje, foi de meus avós. Com os contratos longos, que permanecem vigentes após a morte do titular da terra, os jovens terão que sair do campo. E, acredito que, se os jovens vão embora para as cidades, é porque o sistema governamental vem falhando.”
Segundo o site Paraíba – Atlas Eólico (mapaeolico.pb.gov.br), que tem o domínio .gov, justo no alto da serra da Borborema, cortando municípios como Solânea, Esperança, Montadas, Remígio, Areial, Lagoa Seca, que fazem parte da dinâmica do Polo, passa um corredor de vento com capacidade de geração de 1.750MW, a segunda maior potência do estado.
A reportagem, publicada pela BBC News Brasil um dia após a Marcha, apresenta a empresa que obteve, em 2019, a licença prévia para explorar a geração de energia a partir dos ventos no território alto e plano da Borborema. Trata-se da empresa EDP Renováveis, que pretende instalar um complexo eólico numa área de 7,6 mil hectares.
Segundo a reportagem de João Fellet, essa área corresponde a 7,6 mil campos de futebol “e terá capacidade de 302,5 MW, o suficiente para abastecer cerca de 36 mil casas. Será composto por oito parques eólicos com 55 turbinas (aerogeradores). A EDP Renováveis disse ter o “compromisso de garantir o mínimo impacto ambiental” de seus parques eólicos e solares.”
A pergunta que eu faço
porque eu não me contento:
O povo que mora aqui
ou um empreendimento?
O que protege ou destrói?
De quem mesmo é o vento?
Nada contra as energias renováveis, o problema é o modelo
Gerar energia pelo vento e pelo sol é uma possibilidade muito alvissareira para um planeta que sofre com o aquecimento de sua temperatura e que carece de respostas eficientes e ágeis para conter essa mudança no clima. Mas, a questão, segundo as lideranças sindicais e as famílias agricultoras afetadas diretamente pelos parques eólicos e as usinas solares é o como.
A instalação de verdadeiras indústrias nos quintais, roçados, estradas, áreas coletivas das comunidades, alterando temperatura, acústica e a dinâmica da vida local é altamente prejudicial para as vidas que habitam o ambiente. Não só as humanas, como as dos animais e plantas.
A narrativa construída a partir do interesse econômico interdita a história da violação de direitos das famílias rurais. Com suas vozes silenciadas, as famílias almejam serem ouvidas. A vontade de falar sobre a situação à qual foram submetidas a partir de promessas falsas é algo marcante quando nos aproximamos delas.
Essa é a sensação que tive ao conversar pessoalmente com Núbia Araújo, de 33 anos, e moradora do Sítio Quati, no município de Caetés, no agreste pernambucano, onde a família materna vive há várias gerações. A sua fala era um pedido de socorro.
“Faz tempo que nós ‘veve’ nessa luta. A gente não quer dinheiro, o que a gente quer é o sossego, que antes tínhamos em todos os sentidos”, desabafa ela. “Hoje, quando dá cinco e meia da tarde [hora em que começa a escurecer na região onde vive] a gente não sai mais de casa com medo de assalto. Nas nossas estradas agora passa um monte de gente que não sabemos de onde é e tem muitos casos de furtos”, continua ela.
A 178 metros da casa, onde Núbia vive com seu marido e seus quatro filhos, tem um aerogerador. Ao redor, há outros que foram instalados nas propriedades dos vizinhos, mas que afetam diretamente a dinâmica deles com a zuada dia e noite de “um avião que nunca pousa”.
A filha mais velha, de 15 anos, apresenta sintomas de crise de ansiedade sem diagnóstico médico porque acesso aos serviços de saúde não é fácil para quem vive nas comunidades rurais. Já o filho de quatro anos teve o ouvido estourado “sem dor” por duas vezes. O que fez Núbia acreditar que tem relação com a perturbação que passam há sete anos.
“É praticamente impossível encontrar alguém da minha comunidade que não sofre de algum problema de saúde depois que as torres chegaram por aqui”, assegura ela, que estima ter cerca de 80 famílias vizinhas.
Desse total, cerca de 10 saíram para as cidades. Mas, as que não tem condições, vão permanecendo com desejo de um dia poder se afastar de lá. “Será que há ainda lugar tranquilo para morar”, se questiona. Pergunto se, antes, ela já tinha pensado em sair da comunidade. Com os olhos inundados, Núbia confessa que nunca tinha quisto isso e conta que lá nasceram sua mãe e todos os seus tios e tias, sua avó…
A comunidade de Núbia foi visitada por um grupo de lideranças comunitárias e sindicais do Polo da Borborema em 2018. Voltaram de lá impactados e dispostos a blindar o território para esses empreendimentos. Veio a pandemia e dificultou as visitas dos representantes dos 13 sindicatos rurais que formam o Polo nas casas das famílias agricultoras. Por outro lado, o mesmo não aconteceu com a empresa que seguiu mandando pessoas para convencer, com seu discurso cheio de promessas não asseguradas no contrato, as famílias a arrendar suas terras.
Nos últimos meses, as lideranças do Polo ficaram sabendo que, em vários municípios, algumas famílias assinaram os contratos abusivos e assimétricos com a empresa. Assimétricos porque há uma enorme disparidade entre os direitos e deveres das partes envolvidas. Às famílias, cabe todo o ônus. Às empresas, só o bônus.
O advogado que assessora as organizações sociais da região nesse tema, Claudionor Vital, usa a expressão “perversidade” para definir o espírito dos contratos. “Formalmente, a terra segue no nome dos agricultores, mas a empresa é quem passa a ter o controle sobre seu uso”, conta ele explicando que a atividade principal da propriedade se transforma na geração de energia e qualquer outra atividade só pode acontecer se não interferir na produção de energia. Essa mudança traz sérias implicações na categorização dos proprietários como agricultores familiares, podendo desclassificá-los como assegurados especiais da previdências e tirar deles o direito a outros benefícios sociais conquistados pela categoria a duras penas.
O que as mulheres defendem é o modelo de geração de energia distribuída. Assim como as cisternas distribuíram ao lado de cada casa rural a água, antes concentrada nas propriedades privadas dos coronéis, cheios de privilégios políticos e econômicos, as agricultoras querem infraestrutura para gerar a energia que será usada dentro de casa, no bombeamento de água e no aumento da produção de alimentos e beneficiados. Bem diferente do modelo que só beneficia às empresas multinacionais.
Os benefícios trazidos por esse modelo descentralizado estão sendo apresentados na série Energia Nossa, que foi ao ar na semana em que a Marcha das Mulheres foi às ruas de Solânea na TV Paraíba. A série, que vai exibir hoje (6) o quarto e último episódio, tem a assinatura do repórter Laerte Cerqueira.
JPB2 | Energia Nossa: veja como o sol ajuda a levar água aos sertanejos da Paraíba | Globoplay – episódio 1
JPB2 | Energia Nossa: energia solar ajuda na fabricação de polpas de frutas | Globoplay – episódio 2
JPB2 | Energia Nossa: veja como o sol ajuda a levar água aos sertanejos da Paraíba | Globoplay – episódio 3
Além de ocupar as ruas, a Marcha das mulheres produziu uma carta política que retrata a situação das comunidades rurais com a chegada das indústrias de energéticas a partir da visão das mulheres e propõe uma série de medidas protetivas para ser adotada pelo Estado. Nas mãos das lideranças do Polo, o documento é um instrumento de incidência junto ao governo da Paraíba, deputados estaduais e prefeitos para influenciar políticas públicas voltadas à produção de energia que leve em consideração a qualidade de vida da população do campo.
Porque o milho meu povo
tem polinização cruzada
um milho cruza com o outro
o vento faz a jornada
se o pólen for transgênico
está tudo contaminada
Mas, os conflitos envolvendo a ação do vento não param aí
O território agroecológico da Borborema, referência nacional no cultivo de milhos livres de transgenia e produtor de alimentos beneficiados do milho que fazem parte da dieta dos nordestino, atravessa um momento muito delicado com relação à defesa das suas sementes da Paixão.
Considerado uma zona de conservação de quatro raças de milho endêmicas (só encontradas por lá), o território sofreu um golpe grande vindo do governo da Paraíba. As sementes de milho distribuídas pelo programa público estadual apresenta três das quatro variedades contaminadas por transgenia. Mesmo sendo variedades não transgênicas na sua essência, os seus DNAs apresentam proteínas características dos organismos geneticamente modificados (OGM).
“O milho tem uma polinização cruzada, quer dizer, o milho do roçado vizinho, o vento leva o pólen para o milho do meu roçado. E aquela semente do meu vizinho termina cruzando com a semente do meu roçado. E a minha cruza com a semente do roçado dele. Quando a gente planta semente crioula, não há problema. Mas a política pública não pensa desse jeito. A política pública tem trazido, a cada ano, sementes de fora. Esse ano, tivemos uma preocupação muito grande. O governo do estado distribui as sementes sem nem discutir nos conselhos municipais [de desenvolvimento rural sustentável], apenas distribuiu as sementes vindas de Goiás que tem uma probabilidade grande de ser um milho transgênico. Aí quando é transgênico, a semente crioula desaparece. Ele termina destruindo a história das famílias que aqui resistem, que aqui são guardiões há muito tempo”, conta o autor dos versos Euzébio.
Nossa luta é muito grande
todo hora todo dia
política destruidora
cobra nossa rebeldiaPois sem luta Perdemos nossa soberania
Uma política para a agricultura familiar gerida pela secretaria estadual do agronegócio
Três dias após a 13ª Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia bradar aos quatro ventos a resistência ao modelo industrial da geração de energia, representantes do Polo fizeram críticas a política pública de distribuição de sementes numa reunião com o secretário da Agricultura Familiar e do Desenvolvimento do Semiárido da Paraíba, Bivar Duda.
Foi na manhã da quinta-feira passada, dia 5, no Banco Mãe de Sementes, que funciona numa estrutura que inclui a unidade de beneficiamento de milho livre de transgenia e a cozinha escola, um espaço para formação de mulheres e jovens.
“É um crime ambiental”, sentencia Roselita Victor, na reunião. “Trata-se de um crime que silencia e marginaliza os nossos guardiãos e guardiãs de sementes da Paixão”, segue Roselita. “É um crime que ameaça esse espaço que foi construído com um investimento de R$ 17 milhões levantados pela AS-PTA. Sem sementes livres de transgenia não podemos fabricar o flocão”, acrescenta.
A cada fala, um aspecto negativo da política era revelado. “A política estadual de distribuição de sementes precisa ver os agricultores do território como fornecedores de sementes”, dispara o jovem Mateus Manassés.
“Uma das maiores contradições dessa política é que um programa de sementes direcionado para a agricultura familiar seja gerido pela secretaria que atende aos interesses do agronegócio”, sustenta por sua vez o secretário de Agricultura Familiar e Abastecimento de Lagoa Seca, Nelson Anacleto.
No que toca o abastecimento de sementes às famílias agricultoras, a secretaria coordenada por Nelson está pondo em prática o modelo de programa público defendido pelos guardiões e guardiãs de sementes da Paixão e expressado por Mateus. Essa política foi sistematizada pela Articulação Nacional de Agroecologia para estimular que outras gestões públicas adotem programas semelhantes.
No evento, uma carta assinada pela Articulação Semiárido Paraíba, da qual fazem parte o Polo da Borborema e a AS-PTA, foi entregue ao secretário Bivar. Nela, há exigências de que o governo do estado submeta as variedades de milho distribuídas a testes laboratoriais para comprovação do resultado dos testes realizados com fitas imunocromáticas que detectou presença de várias proteínas de organismos geneticamente modificados.
Pela gravidade da situação, a Comissão de Sementes do Polo orienta às famílias guardiãs das sementes da Paixão que não peguem as variedades de milho dadas pelo Estado para não contaminar o material genético que fazem parte das histórias delas de produtoras de alimentos saudáveis.
Neste caso, essas famílias receberão sementes crioulas adaptadas às características locais que sindicatos, prefeituras, Polo da Borborema e a AS-PTA estão comprando com seus próprios recursos. Essa distribuição local de sementes faz parte da estratégia da campanha “Não planto transgênicos para não apagar a minha história”, que o Polo realiza desde 2016.
Em resposta aos presentes, o secretário Bivar pediu que a denuncia da contaminação fosse levada para o Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural Sustentável pelas organizações presentes e que ele, enquanto governo, também faria o mesmo. O mesmo conselho foi denunciado pelos presentes como espaço pouco democrático e que está sofrendo processos de manipulação pelo Estado.
Um território com soberania e segurança alimentar
São 20 mil famílias envolvidas em inúmeras iniciativas que se interligam e fortalecem os sujeitos mais vulneráveis do campo – mulheres e jovens – assim como os agricultores.
O Polo da Borborema mantém em funcionamento 13 feiras agroecológicas em 10 municípios, além de pontos fixos de venda de alimentos agroecológicos in natura ou beneficiados.Uma das grandes proezas das famílias agricultoras ligadas às dinâmicas do Polo da Borborema são os campos de milhos livres de transgenia, quando no Brasil essa missão é quase impossível.
Desses campos espalhados em várias comunidades e assentamentos da reforma agrária saíram mais de 10 toneladas de milho de abril a dezembro de 2021 que foram beneficiados em flocão, fubá, munguzá, farelo e xerém. Esses alimentos livres de transgenia abastecem as famílias agricultoras e são vendidas para quem vive nas cidades.
O milho é maravilhoso
planta junto à trovoada
pois na época juninaA comida é ofertada
Deus nos dá a alegriade ter a terra plantada