Por Hyader Epaminondas

Exibido pela primeira vez na 49ª Mostra SP, o novo filme de Bill Condon revisita o clássico de 1985, dirigido por Héctor Babenco, inspirado no romance de Manuel Puig e no musical de Terrence McNally, adaptando a versão da peça em linguagem cinematográfica que celebra o poder da fantasia e a força da sobrevivência emocional.

Se no original o confinamento e a repressão eram o ponto de partida para discutir política e desejo, aqui Condon faz da mise-en-scène uma ponte entre a realidade árida e o delírio libertador. Sua lente transforma o cárcere em um palco de horror e silêncios sufocados, enquanto o amor surge como um lampejo insurgente em meio a uma Argentina de 1983, onde a ditadura militar esmigalhava corpos e almas.

No texto que escrevi sobre “O Homem de Mil Filhos”, explorei as múltiplas formas da linguagem do amor, e aqui quero aprofundar mais duas delas. Molina, interpretado por Tonatiuh Elizarraraz, uma vitrinista presa durante a ditadura por sua sexualidade, divide a cela com Valentín, que ganha vida através de Diego Luna com uma delicadeza oculta, um militante político e homem de convicções sólidas na academia.

O contraste entre eles revela que o amor não é apenas desejo, mas também compreensão, cuidado e resistência. Entre o toque contido, diálogos que saem para acolher e que acabam ferindo, e a convivência forçada, surge uma intimidade que desafia tanto os muros da prisão quanto os rótulos impostos pelo mundo exterior, onde o íntimo se dissolve na luz e na sombra de sonhos compartilhados.

O cinema não precisa nomear o que nasce ali, porque o que se vê não é uma categoria, é uma pulsação viva. Entre o toque e o silêncio, entre o ideal e o desejo, o filme revela algo que não se explica, apenas se sente: o impossível se tornando íntimo, o proibido se tornando humano. O amor queer é líquido demais para caber dentro das grades que o cercam.

Dentro daquela cela abafada, onde o concreto deveria endurecer corpos, ideias e afetos, o amor escorre por entre as frestas. Ele se infiltra no cotidiano mais áspero, na partilha da comida, no olhar que demora um segundo a mais do que deveria. É um amor que resiste à contenção, que se molda ao espaço como a água que insiste em encontrar saída, mesmo em paredes sem janelas.

O encontro entre eles é mais que um simples contraste de mundos, é o choque de duas maneiras de respirar o próprio tempo. Molina vive em Technicolor: transforma o cinza da cela em cenário, costura a solidão com memórias de filmes antigos, recria a si mesmo em figurinos invisíveis e gestos ensaiados diante de um público imaginário composto de um homem só. Valentín, ao contrário, encara a vida em preto e branco: acredita no concreto, na disciplina do corpo, na luta que se faz com ideias afiadas e ações firmes. Um se protege nas palavras, o outro se ancora na lógica.

Condon enquadra esse atrito como quem coreografa uma dança secreta, o passo vacilante de um, o olhar contido do outro, até que o desejo e a empatia começam a marcar o mesmo compasso. Entre o sonho e a ideologia, entre o sentir e o pensar, o filme encontra um ritmo onde o humano, finalmente, vence o abismo que os separava.

A sedução de Molina não é desejo direto: é a projeção de sua imaginação. Cada momento encenado na cela é uma tentativa de traduzir sentimentos e desejos em algo que Valentín possa compreender. Sua imaginação explode em cores que respiram e vibram, como se cada tom tivesse corpo próprio. Vermelhos incandescentes queimam no espaço, azuis profundos fluem como rios de sombra e luz, com verdes e amarelos cintilando com uma intensidade quase mágica.

O que Molina cria é, ao mesmo tempo, inventado e íntimo, e Valentín reage a essa projeção, completando o vínculo com seu corpo, seu silêncio e sua lógica. O amor entre eles se constrói na intersecção do inventado e do real, revelando que o toque e a palavra são apenas partes de uma linguagem mais ampla, que só se manifesta quando os mundos de ambos se encontram.

Jennifer Lopez surge como a figura central desse delírio. Ela é a imagem idealizada que Molina projeta em suas histórias. É a musa que habita a mente do prisioneiro, símbolo de tudo que ele deseja ser e daquilo que o cinema representa para ele: a possibilidade de sonhar mesmo dentro da opressão. Lopez existe entre o real e o imaginado, como se fosse feita de pura projeção. Sua presença encarna o amor pela arte e o poder do olhar que cria beleza a partir da dor.

O musical se desenrola entre grades e fantasias, entre gestos contidos e explosões de cor intensa como uma paixão aquecida pela imaginação. Condon transforma a cela em palco e o delírio em resistência. Quando Molina narra, a cela se abre e o mundo se expande em coreografias exuberantes, e a realidade desaparece por alguns instantes. É nesse intervalo que o filme se torna mais humano: no modo como os personagens encontram na ilusão uma forma de existir. A estética do espetáculo não serve para distrair, mas para revelar o que há de mais íntimo em cada um deles.

Há também uma camada política que não se perde, apenas se desloca. Se Babenco retrata a brutalidade da repressão militar, Condon amplia o olhar e reflete sobre a prisão simbólica dos afetos, a dificuldade de amar em um mundo que exige objetividade. Sua versão fala sobre as ditaduras contemporâneas da razão, da aparência e da masculinidade. O amor entre Molina e Valentín se torna um gesto revolucionário porque desafia essas estruturas, propondo um encontro entre opostos que só se compreendem através da imaginação.

Amor líquido atrás das grades

Condon constrói o vínculo entre Molina e Valentín a partir de um jogo dialético: um fala através das palavras e imagens que inventa, o outro responde com o silêncio e o toque e, no começo, sarcasmo e ironia com excesso de lógica, como um mecanismo de defesa automático. O amor é um diálogo entre duas gramáticas incompatíveis. Um fala pela metáfora, o outro pela carne. E, no atrito entre essas duas linguagens, surge o verdadeiro encontro, aquele que não pertence nem à fantasia nem à realidade, mas ao espaço intermediário onde ambos finalmente se escutam.

A palavra, nesse contexto, torna-se ponte. É ela que permite a travessia entre o desejo idealizado e a presença concreta do outro. Quando Molina narra, ele traduz o mundo em cena; quando Valentín escuta, ele decifra o afeto escondido por trás do artifício. É por meio da narrativa, dessa invenção constante, que o amor acontece. A fala de um é a imaginação do outro, o toque de um é a tradução física daquilo que antes era apenas imagem. Condon enquadra essa simetria como quem observa dois mundos que se dobram um sobre o outro até se confundirem.

Jennifer Lopez, nesse circuito simbólico, deixa de ser personagem e se torna conceito. Ela é a forma visível do amor de Molina, mas também a imagem que Valentín precisa enxergar para se permitir sentir. Lopez é o cinema dentro do cinema, uma figura projetada que adquire corpo porque é desejada. Sua performance ecoa o arquétipo da estrela clássica de Hollywood, mas Condon a subverte: ela não é musa por existir, e sim por ser inventada. É o olhar apaixonado que a faz ser.

Essa leitura metacinematográfica é essencial. O romance entre Molina e Valentín é, em última instância, uma alegoria sobre o próprio ato de assistir a um filme. Amamos o que projetamos. Acreditamos no que sabemos ser surreal porque precisamos dessa ilusão para sobreviver. E, assim como o cinema, o amor não se sustenta pela verdade, mas pela força da crença compartilhada, dois olhares que, por um instante, constroem o mesmo delírio.

No fim, o que resta é o verbo. O verbo que nomeia, inventa, acaricia e resiste. “O Beijo da Mulher Aranha” se ergue sobre essa descoberta: amar é criar uma linguagem comum entre mundos inconciliáveis. E talvez seja essa a definição mais precisa de fantasia, o instante em que a palavra se transforma em gesto, e o gesto, em eternidade.